segunda-feira, 28 de novembro de 2011

mãos.

Vazio. O quartinho alugado no oitavo andar claustrofobicamente cheio de vazio, escorrendo pelas paredes descascadas, manchando o teto desbotado escurecido pela noite fria de julho, ocupando cada mísero centímetro do chão empoeirado e encardido, esparramando-se nas superfícies dos móveis antiquados e confusamente dispostos. Vazio que ela inala com dificuldade, mergulhada num mar plácido de cobertores felpudos e roídos, vazio que entope suas vias respiratórias, engarrafa o tráfego fluente do oxigênio que, por ora, não deseja, pudesse, assim, colocar fim à inquietude do corpo frágil e doente que repousa no colchão torto ou à insanidade berrante e irrequieta da sua mente confusa. Tudo o que lhe fora deixado, aquele vazio que ocupava cada quina do quarto e de sua vida, e que a mantinha acordada, de olhos arregalados, a noite toda. Vazio ensurdecedor das partituras silenciosas, ópera minuciosamente composta de sussurros do vento frio a balançar a janela de madeira. Vazio.

Acende um abajur. Veste, sobre o cadavérico e pálido corpo nu, um vestido longo e vermelho. Procura os sapatos, na penumbra cortada apenas pela tênue luzinha mórbida, calça-os e senta-se defronte a penteadeira antiquíssima para pentear os cachos castanhos. Fantasmagórica é sua visão exposta friamente no reflexo do espelho sujo. Toma a maquilagem e se pinta sem vaidade, colore os olhos manchados de mágoa e insônia, realça a opacidade do azul de suas pupilas expressivas, mas não expurga os demônios da tristeza que assombram sua beleza. Colore os lábios de lívido tom escarlate, borra a boca carnuda que engole a vontade de viver — ou de não morrer, não se sabe bem — compilada em pequenas pílulas prescritas. Apaga-se a luz, some o espectro no breu.

Ecoam os saltos na rua vazia, molhada da chuvinha fraca e insistente. Abraça-se, protege-se do vento constante que lhe beija as bochechas magras, as gotas da chuva borrando os olhos mal-pintados, umedecendo os cabelos, fluindo pela fronte. A pele fina arrepia, o frio desperta alguma vida nas veias arroxeadas, visíveis no lençol epidérmico que lhe serve de invólucro. Vê as luzes de um barzinho medíocre e imundo brilharem no escuro da madrugada fria. Anda o tão rápido quanto os saltos permitem, entre as cortinas de chuva e vento, e se abriga lá.

Trata-se de uma espelunca mal-iluminada, fedorenta e imunda, com pouco mais de três almas perdidas, bêbadas e debruçadas no balcão longo. Ninguém nota sua entrada, exceto um rapaz, sentado a uma mesa no fundo escuro do botequim. Ele acompanha, com olhos curiosos, ela pedir vinho, que lhe é servido nunca caneca grosseira e encardida; não se importa, dá uma bela golada no vinho barato e senta-se a uma mesa ao seu lado, embora sequer note a presença dele. Apóia a caneca na mesa arranhada e gasta algum tempo tentando ajeitar os cachos molhados do cabelo, quando a voz dele ressoa inadvertidamente em seus ouvidos:

— É de se estranhar uma dama bela como ti num cafofo fétido destes, mas confesso que se trata de uma agradável surpresa.

Vira-se para ele, subitamente assustada, e se depara com dois olhos castanhos mirando-a com interesse sob a luz precária. É um rapaz jovem, de traços firmes e brutos, barba e cachos malcuidados, vestido num terno notavelmente barato, mas que lhe garantia certo charme. Encarou-o displicentemente, como quem visita uma galeria de arte vulgar, mas os olhos azulados rapidamente tornaram-se para a caneca de vinho. Ele sorriu galantemente, supondo tratar-se de lúdico flerte, necessidade feminina de valorizar-se através da indiferença forçada. Anunciou seu nome, graça comum herdada da devoção de sua mãe ao santo, e esticou a mão esquerda no esforço de conseguir um cumprimento. Mão de dedos longos e grossos, nos quais ela posou os olhos com discreta curiosidade; mão de linhas misteriosas, de roteiros inusitados, de marcas significativas, pequenos recortes atemporais na carne crua; mão de subterrâneas veias correndo sangue feito canais, o fluxo ininterrupto da vida posto diante de seus olhos; mão de unhas rusticamente cortadas, mão masculina, bruta e, paradoxalmente, afetuosa, convidativa; mão na qual ela entregou a sua, hipnotizada, como se entregasse toda a sua vida ao mesmo tempo, como quem pede, desprovido de orgulho, para ser cuidado. Entre os dedos fechados dele, sentindo o calor de sua palma áspera e seca, diz-lhe o nome, influência do gosto do pai pelos musicais dos anos 60.

— Tem mãos bonitas — elogia, ainda aparentemente encantada com a mão que envolvia a sua.

— De que me adiantam mãos bonitas se o toque nas cordas do banjo é rude, as pinceladas na tela são vulgares, o adestramento da caneta é ordinário?

— Estou diante de um artista, portanto.

— Estamos todos diante de artistas, todo o tempo — declara nebulosamente, a voz ressoante temperada com a boemia. — O que é a vida senão tela em branco, na qual espalhamos a aquarela dos nossos desejos? O que somos senão poetas à procura da rima para os sonetos de nossos anseios? Somos artistas, minha linda flor, somos sim.

Bebem até os olhos avermelharem-se, os corpos anestesiarem-se no torpor etílico, as palavras patinando nas línguas, espiralando nas risadas descomedidas que ecoavam nas paredes escuras do bar vazio. Ele paga os tantos chopes e vinhos com algumas notas amassadas e umas pratinhas pescadas do fundo do bolso e os dois ganham a calçada. Chove ainda. Ela estremece involuntariamente ao ventinho frequente que anunciava o iminente amanhecer, mas as mãos dele tocam-na nos ombros, feito um casaco, aquecendo-a do frio. Ajeita-se entre os braços dele, “minha casa é logo ali” num balbucio débil e caminham na chuvinha persistente a passos bambos entre as poças d’água que reluziam as lâmpadas dos postes. Escalam os oito lances de degraus, a chave gira na fechadura, as línguas giram na boca, a saliva mistura-se à chuva nos lábios flamejantes. Caem roupas encharcadas no chão, caem corpos na cama bagunçada sob a penumbra do último suspiro da madrugada, e ele irrompe na fragilidade macilenta dela, sua brutalidade animalesca atenuada por um zelo recém-adquirido. Sente-o, a massa corpórea firme que agora a cobre, procura as mãos dele na cama, “não, não são estas mãos”, um pânico lhe acomete enquanto ele se move dentro dela. Mãos erradas, depois daquelas serão sempre mãos erradas e ela sente os olhos explodirem em lágrima e desespero quando ele explode de prazer e volúpia.

Seca os olhos com fúria, vira-se para o lado, tapa o corpo nu com um cobertor. Ele não compreende. Tateia alguma peça de roupa, questiona em meio à confusão:

— Queres que eu vá embora?

— Não me importa — a rudeza a escorrer pelos lábios. — Mas se decidires ficar, faça-me um favor: mantenha tuas mãos longe de mim.

Ele termina de procurar suas roupas no escuro, abotoa a camisa branca e veste o paletó por cima. Para à porta, de onde a luz do corredor revela o corpo inerte dela na cama, feito um moribundo em seu leito de morte. Olha-a pela última vez antes de sair, os olhos castanhos enaltecidos de compaixão e, de mãos nos bolsos da calça, desce as muitas escadas a caminho do amanhecer chuvoso.

Vazio. O quartinho alugado no oitavo andar claustrofobicamente cheio de vazio.

 "Homage to Edward Hopper", Antonio Tamburro

Nenhum comentário: