domingo, 26 de dezembro de 2010

1988.

Entro pela porta dos fundos. Sei que não sou bem-vindo e não gosto da prepotência que exigiria uma entrada pela porta da frente. Meus passos, como de costume, são sorrateiros e calmos, de uma serenidade adquirida com o passar de muitos anos. Alcanço a cozinha e encosto-me sobriamente no batente da porta. Trata-se de um simplório cômodo fracamente iluminado pela luz do fim do do dia. Sobre o fogão escarlate, uma panela inunda a cozinha num vapor aromático, onde ferve uma sopa de legumes e macarrão. As vidraças da janela-basculante embaçam-se na quentura da cozinha e a mãe repousa a colher com que mexia a refeição sobre a pia, virando-se pro pequeno garotinho aos seus pés. "A sopa já está quase pronta", ela diz num tom amável, ignorando minha presença. "Vou ali no quarto buscar um pano para tratar-te. Cuidado com o fogão que a sopa está fervendo."

A mãe atravessa o pequeno corredor e entra no quarto. Olho para o menino. Não gosto quando são crianças. É deveras doloroso para mim. Deve ter por volta de três anos, um pedacinho de vida que não ultrapassa os noventa centímetros, dono de dois olhinhos castanhos expressivos e curiosos. Me aproximo lentamente lançando-lhe o melhor sorriso que possuo, embora não exista qualquer vontade de rir em mim. Abaixo-me e deixo meus olhos azulados na altura dos dele. Minha voz é suave, na medida exata para não assustá-lo: "Hey rapaz. Você parece meio cansadinho. Tá cansado, é?" O molequinho meneia a cabeça, coçando o olho com a ponta do indicador. Num movimento rápido, alcanço a alça de ferro da tampa do forno. Temo que o barulho alerte sua mãe, mas ela não aparece. Sob o fogão, a sopa borbulha violentamente. "Pronto, sente-se aqui pra descansar um pouco", digo a ele, apontando para a tampa do forno aberta. Obediente, o menino se senta, absorto na ingenuidade inerente às crianças. Ajo rapidamente. Com frieza. Ponho-me de pé e meus dedos agarram o fogão, virando-o sobre o menino.

O protocolo é claro: não devo permanecer no local depois que acontece. Mas o abrupto estrondo do fogão chocando-se contra o chão, enquanto o líquido fervente escorria sobre os cabelos encaracolados do menino, trouxe sua mãe rapidamente à cozinha. Pude ouvir seu coração: era o som de cem tambores rufando em uníssono. Vi o pavor em seus olhos quando suas mãos trêmulas puxaram o garoto encharcado do chão e o seguraram contra seu peito. O garoto sufocava numa mistura mortal de dor e susto e aquele panorama me prendia ali, embora soubesse que já devia ter ido embora. Não havia mais ninguém em casa e, enquanto lágrimas desesperadas surgiam em seus olhos, a mãe correu em direção à rua, apertando o filho contra o peito como se, assim, retroagisse o tempo e evitasse o que acabara de acontecer.

É a minha maior fraqueza: a compaixão que habita meu coração e toma conta das minha atitudes de vez em quando. Sei que não posso ser submetido a ela. Sei que preciso ser forte nesses momentos e cumprir o papel que me é designado. Mas, às vezes, simplesmente não consigo. Segui a mãe e o garotinho de perto e os alcancei quando ela conseguiu uma carona para o hospital com um morador do bairro. Sentei-me ao lado deles, no banco de trás, o carro tomando a rua com velocidade e desespero. O menino começa a ganhar uma cor púrpura, a intumescência tomando conta de sua face tão frágil e ingênua. Segurei sua mãozinha banhada da sopa fervente, a pele em carne viva, e disse-lhe ao ouvido, calmamente: "Hey, Rapha. Fica calmo, tá bom? Vai ficar tudo bem."

domingo, 28 de novembro de 2010

technicolor.

A explosão de luzes escocesas. Lívidas. Multicoloridas. Do vermelho sinistro ao amarelo catastrófico.

As cortinas alvas que escondem o picadeiro de desejos. O espetáculo não ensaiado regido pelo nervosismo da possível plateia. O sorriso... Ah, o sorriso.

Teus passos nos degraus estreitos. Tua silhueta lânguida contra o resquício de luz do corredor mal-iluminado. O abrir da porta e os corpos que se encontram num breu, estranhamente, tingido com pincéis alvoroçados e aquarelas ansiosas.

O fechar dos olhos. A penumbra matinal, o fim da farra vizinha, o silêncio sufocado. Como posso ver-te tão nitidamente na tênue linha de luz que ultrapassa a frincha da janela? Brilhas em cores pálidas e oníricas que confundem oticamente minhas retinas exaustas.

O zéfiro de tua respiração em meu pescoço, o deslizar dos dedos no sono leve. As primeiras cores da manhã nublada revelando nossos corpos no teto. O encaixe, o arrepio de frio contido com o peso de tuas pernas sobre mim.

O gosto úmido nos lábios e no pescoço. A intumescência da respiração, a urgência dos suores. O turbilhão de voluptuosas cores e desejos. A suavidade questionadora de teu dedo em minha testa.

Os olhos castanhos. Os teus apertados e brandos, os meus vastos e irrequietos. O reflexo das luzes silenciosas nos plácidos espelhos que eles compunham.

A última gota de saliva em teu pescoço tenso. O silencioso abotoar das camisas, o descer das escadas e a opacidade da luz nas ruas ofendendo nossos olhos preguiçosos.

O esplendor amarelado do desjejum.

E os passos bambos pela cidade calma. Brilhas tão forte ao meu lado que me afogo lentamente no teu mar de cores pungentes. Reprimo a vontade instintiva de abraçar-te, contento-me em mirar o horizonte do teu sorriso.

O navegar pelo rio que me apresentas pacientemente, entrelaçando seus dedos nos meus. Chegamos à nascente dele e, depois de um último abraço, assisto a tu sumir à primeira curva.

Tuas cores colorem meus dias seguintes. Tento, em vão, guardar um tantinho da tua luz numa caixinha esverdeada. Mas, como uma estrela efêmera, a luz extingue-se e as cores se dissolvem numa tempestade acinzentada de frustração.

Tudo é preto-e-branco novamente. Resta apenas a monocrômica solidão angustiada que se torna, cada vez mais, parte idiossincrática de mim.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

belle and sebastian no circo voador: uma odisseia.

Era início de outubro quando descobri que Belle and Sebastian, uma de minhas bandas favoritas, estava de malas prontas para desembarcar no Brasil. Como vocês sabem, sou universitário, destes que encarnam muito bem o papel e vivem duros, contando as pratinhas para a xerox de apostilas. Mas resolvi que essa era uma ocasião especial e quebrei o porquinho, juntei as economias e adquiri meu ingresso - deixando algumas apostilas de História da Língua Portuguesa para um futuro remoto.

O dia era 12 de Novembro, uma sexta-feira acizentada e úmida. Os planos eram pegar meu ingresso com a Nati no Rio às 17h e seguir, com o auxílio da minha santa Tia Cléia, para a casa da Karla, minha prima, com quem iria ao show. Contudo, quando sua banda favorita está prestes a tocar, a lei de Murphy estará à espreita, preparando o bote.

Cheguei às 14h à rodoviária, já descobrindo que o próximo ônibus para o Rio com poltronas vagas só partiria às 16h. Sem problemas, a baldeação é um amiga minha de outros carnavais. Assim, de Friburgo para Cachoeiras, de Cachoeiras para Itaboraí e, finalmente, de Itaboraí para o Rio, uma rota que economiza na grana proporcionalmente o que gasta na paciência. Três ônibus e um atraso não previsto na agenda. SMS para a Nati, possuidora do meu ingresso até então, que avisa que não pode me esperar e precisa atravessar para Niterói. Lá se vai meu ingresso, cruzando a Guanabara numa barca velha.

Passava das 18h quando desembarquei no Rio, achei minha tia e fomos juntos para o terminal das barcas. Sexta-feira. Horário de rush. PUTA QUE PARIU, como tinha gente naquele lugar! Uma fila de 30 minutos, uma viagem numa barca abarrotada e, finalmente, tinha em mãos a preciosidade da noite, disfarçada de uma filipeta de papel de 15 cm. Era mais de 20h quando tomamos o ônibus de volta para o Rio, rumo à casa da Karla. Lembro-me do nervosismo, da ansiedade e, acima de tudo, do medo de perder o show que me assolou durante o percurso do coletivo.

Às 22h, encontro Karla na esquina de sua casa. Faltava 1h para o show. Lache rápido, trocas de roupas, compras de quilos de alimentos e, proxíma parada: Lapa. Encontro o Lucas - um amigo com o qual havia marcado de assistir ao show junto - na fila e, lutando contra todas as forças que regem o planeta Terra, estava dentro do Circo Voador na hora programada.


Make me dance, I want to surrender.

foto de Nailana Thiely.

Os escoceses entraram no palco com 30 min. de atraso, Murdoch com roupas invernais que contradiziam o clima quente que tomaria conta do show. "I didn't see it coming", faixa que abre o álbum mais recente, também abre o show, e um coro estridente de arrepiar os pelos acompanha a voz delicada e suave de Sara, que era só sorrisos. Seguiram "I'm a Cuckoo" e "Step Into My Office, Baby", ambas do álbum "Dear Catastrophe Waitress", que já mostravam o rumo que o show tomaria: a melancolia tão característica de Murdoch e sua trupe daria espaço para as canções mais dançantes, do indie pop de "Dirty Dream #2" e "Write About Love" às feitas para cantar junto, como "The Wrong Girl" e "Another Sunny Day". O vocalista esbanjou carisma com suas dancinhas exuberantes e suas arranhadas no português, chegando a atravessar o público no meio de "If you find yourself caught in love" para terminar a canção na arquibancada superior do Circo. Momento de delírio coletivo.

A doçura das melodias mais melancólicas esteve salpicada num setlist feito para agradar a novos e antigos fãs: "Lord Anthony" e "The State that I'm in" arrancaram suspiros, enquanto clássicos do "If you're feeling sinister" (meu álbum favorito dos caras de hoje e sempre), como "Judy and the Dreams of Horses" e "Like Dylan in the Movies" foram acompanhadas com aplausos calorosos e coros emocionados. Esqueci-me até da ausência da canção homônima desse segundo álbum quando pude berrar a plenos pulmões os versos de "The Loneliness of a Middle Distance Runner". Também vale ressaltar o quão bacana ficou o arranjo que fizeram para "Piazza, New York Catcher", canção que Murdoch cantou sentado à beira do palco, derramando simpatia para a plateia.

Se me pedirem para ser imparcial e dizer como foi o show do Belle and Sebastian do Circo Voador, sou obrigado a assumir que não conseguiria. Era uma das minhas bandas favoritas há pouco mais de 20 m de distância, tocando todas as canções que eu já havia ouvido à exaustão. Mas assista ao vídeo de "Get me Away from Here, I'm Dying", faixa que fechou o show, e tire suas próprias conclusões. Se o show de São Paulo foi acusado pela imprensa de ser frio, podemos dizer que os cariocas mostraram aos escoceses todo o calor do nosso país.

domingo, 10 de outubro de 2010

o fantástico mundo de rapha.

Como eu poderia não me identificar com "Onde vivem os Monstros" - filme que retrata com tanta sensibilidade o mundo secreto da imaginação de uma criança - se fui eu também dono de um vasto mundo quando era um pivetinho mirrado correndo pelas ruas da Chácara do Paraíso? Como não me emocionaria ao ver o pequeno Max criar a aventura de sua vida se ainda hoje sinto falta das peripécias criadas pela minha imaginação há alguns muitos anos atrás? E como, depois de assistir ao belo filme, não me sentir tentado a fazer mais uma visita a esse meu mundo, que guarda em suas paredes multicoloridas os dias mais felizes da minha vida?

As brincadeiras de rua nunca foram suficientes para o pequeno Raphael e seu inseparável boné: não bastava rodar pião, soltar pipa, esconde-esconde e io-iô. Ele queria criar mundos, não importa como fosse. As pedras do seu quintal foram forçadas a se metamorfosear e ganhar vida, tornando-se, cada uma delas, um violento tiranossauro-rex, uma baleia jubarte e até um sapo gigante. Gabava-se da destreza com que pulava de uma para a outra, da agilidade com a qual transitava entre os muitos mundos dos limites do seu quintal. A obra ao lado da sua casa nunca poderia ser simplesmente uma residência em construção. Havia tardes em que ela navegava em mares turbulentos, na forma de uma barco predestinado a naufragar, graças a uma bomba armada por algum ardiloso vilão. A mesma obra podia tornar-se uma escola para as aventuras teen de uma galerinha que adora pintar o sete, como diria o narrador da Sessão da Tarde. E, no alto da megalomania de sua mente, tudo aquilo era uma ilha de pescadores pronta para acompanhar uma ávida história de amor entre uma modelo e um empresário - um roteiro nada infantil que o pequeno encenou sozinho, fazendo todos os papéis. Seu mundo muitas vezes não estava aberto para visitas, era necessário viajar sozinho e se perder em suas matas fechadas - representada tão bem pelo limoeiro no centro do quintal, ao lado do enorme pé de fruta-do-conde. Naquela época, correr sozinho pelo quintal não era sinal de tristeza e solidão. Era apenas a hora de ser egoísta e ter a aventura só para ele.

Mas bom mesmo era cruzar a cerca-viva que separava minha casa da do Léo Jaime e ir desbravar novos mundos. Juntos, inseparáveis, montávamos mundos em miniaturas no quintal dele, com todos os tipos de objetos possíveis. Quando Ritiele estava junto - e não estava chorando, sua especialidade - fazíamos nossa espetacular encenação baseada nos personagens do Senninha, reflexo do impacto causado pela então recente morte do piloto. Um pouquinho mais à frente havia a casa da Dona Lurdes, minha avó adquirida por empréstimo, de paciência infinita com a criançada que se acumulava na varanda da sua casinha. Era tanto amor pela velhinha que havia disputa para saber quem seria o primeiro a dar-lhe um beijo de bom dia - o que me fazia, muitas vezes, despencar para a casa dela às 6 da matina. Com doçura de dar gosto, lembro-me de seus olhos gentis, dos seus braços flácidos me rodeando e do carinho recíproco com que ela me recebia todas as manhãs. Lembro-me também de entrar em minha casa a passos sorrateiros e roubar alguns ovos da geladeira para que Dona Lurdes fizesse um delicioso omelete para todos nós. Improvisávamos uma festa e, dando uma breve pausa nas brincadeiras, devorávamos o omelete.

Em algum tempo, Léo e Riti se foram. Era hora de expandir os horizontes, aumentar os domínios do meu mundinho particular. Chegava agora à Rua Eugênio Couto e, rapidamente, adquiri um novo companheiro para minhas aventuras estapafúrdias: eu e Filipe construímos parques aquáticos para bonecos - época em que ele deixou uma calha cair da laje de sua casa e perfurar meu braço -, criamos telenovelas juvenis baseadas em livretos de conscientização do governo, romanceamos vídeo-games de luta (com participação especial de Peterson e sua irmã), redigimos revistas em quadrinhos, criamos toda uma série de monstros com os moradores ilustres do bairro, enfrentamos zumbis, fizemos corrida de litros pelo rio... Poderia inumerar por linhas e mais linhas por quantas aventuras Filipe foi meu fiel escudeiro, mas já ficou suficientemente claro que ele era engrenagem fundamental para o meu mundo criativo.

Outras peças importantes no tabuleiro da minha infância são Diego, Gustavo, Marcinho, Luiz (que hoje em dia é Gustavo), Carola, Carina, Diogo (onde quer que ele esteja) e por que não Josy, não é mesmo? Este post é dedicado igualmente a todos vocês que se tornaram marujos, piratas, bandidos, detetives e caçadores de zumbis por tantas e tantas vezes, mergulhando de cabeça num oceano de invenções malucas criadas por mim.

Contudo, uma hora a voz engrossa, o bigode cresce e a ingenuidade e pureza esvanecem, massacradas pela realidade, pelo compromisso, pela chatice que é se tornar adulto. Restam fotografias polaroide, dentro de sua mente, das viagens que você fez para um mundo que, agora, só existe na sua memória.

sábado, 2 de outubro de 2010

Música e Divagações: "Write About Love", Belle and Sebastian.


Faixa 1: I Didn't See It Coming

"(money makes the wheels and the world go round)
forget about it, honey"

Antes de qualquer outra coisa, dois avisos sempre válidos quando escrevo este quadro aqui no blog: eu não entendo quase nada de música, sou um mero apreciador sem conhecimentos profundos ou estudos sobre música. Portanto, tudo aqui é muito superficial - afinal, quem sou para analisar Belle and Sebastian, não é mesmo? Em segundo lugar, o Música e Divagações não é resenha, crítica ou artigo musical, mas simplesmente um espaço onde coloco um bom álbum para tocar e escrevo o que me vier à cabeça. Por isso, você, fã mala e super-indie que foi trazido até aqui pelos caminhos tortuosos do Google, ainda dá tempo de ir embora sem querer me matar com requintes de crueldade. Obrigado pela compreensão.

Ah, Belle and Sebastian! Lembro-me da primeira vez que ouvi uma canção deles, para vocês perceberem o quão importante é esta banda em minha vida. Estávamos eu e Bia¹ no Emi Esse Ene - a loira, que ganha o número 1 porque chegou primeiro; não quero brigas entre vocês duas - trocando figurinhas musicais, como sempre fazíamos. Conheci tantas bandas graças às dicas dela e acredito que também fiz boas indicações. Naquela noite, ela me perguntou se eu conhecia Belle and Sebastian. Minha resposta foi categórica: "Não conheço e nem quero conhecer". Sim, é verdade. eu reneguei uma das minhas bandas favoritas antes mesmo de conhecê-la.





Faixa 2: Come on Sister

"You could love
After all that's what you're looking for
You can love
It's a currency unspoken of."

Minha resposta tem um porquê, embora eu não saiba se esta é uma explicação válida: na época, adepto da vagabundagem, eu gastava minhas manhãs assistindo à programação matinal da Mtv. Era uma hora marginalizada onde eles comprimiam os clipes que o público-alvo não tinha interesse nenhum em assistir. Foi ali que tive a chance de conhecer bandas como Franz Ferdinand, Kings of Leon, Killers e Bloc Party, só para citar algumas. Vale ressaltar que há 5 anos atrás eu era um analfabeto digital e foi a Mtv que me salvou da alienação radiofônica.

E onde o Belle and Sebastian entra nisso?
Nessa época, o clipe de "Step into my Office, Baby" era presença certa em todas as manhãs. E eu simplesmente odiava a música, o clipe e tudo mais. Mas não se preocuparem, eu já corrigi esse pequeno deslize e hoje em dia eu adoro a música.

Faixa 3: Calculating Bimbo

Falando um pouquinho sobre o "Write About Love" antes de voltar à (nada) interessante narração sobre meu contato inicial com a música dos escoceses, "Calculating Bimbo" é, indubitavelmente, desde o primeiro momento que ouvi o álbum na íntegra, a minha música favorita deste sexto disco de estúdio. E pelos comentários que vi por aí no last.fm e no orkut, creio que não sou o único que pensa dessa forma. É uma das poucas canções que me passam sentimento de verdade, como os álbuns anteriores. Gosto da euforia de "Come on Sister" também, e "I didn't See it coming" é uma faixa direitinha, na linha. Mas a trinca inicial tem seu ápice com essa melodia maravilhosa de "Calculating Bimbo", com certeza. É uma pena que cheguemos a pensar que a coisa vai dar uma guinada e o álbum vai deslanchar, mas são expectativas frustradas, já vou avisando.

Faixa 4: I want the World to Stop

"I want the world to stop
Give me the morning, give me the afternoon
"The night.

Essa é uma das faixas que gosto bastante também. Gosto do ritmo da bateria e, de alguma forma, ela é uma das poucas que ainda me lembram o Belle and Sebastian clássico. Corrijam-me se eu estiver viajando bonito. E aproveite, povo, aproveite. O álbum vai desandar em poucos instantes.

Bom, então graças à faixa inicial de "Dear Catastrophe Waitress" eu reneguei o Belle and Sebastian num primeiro momento. Mas Dona Bia Fiola foi insistente e devo ser grato a ela por isso pelo resto dos meus dias: "Rollercoaster Ride" me foi enviada e "OMFG, que coisa linda é essa que você tá me passando, Bia?" foi o primeiro pensamento que me veio à cabeça. Logo depois ela me passou "Beautiful", "I'm Waking Up to us" e "Get Me Away from Here, I'm dying" e pronto. Já era amor.


Faixa 5: Little Lou, Ugly John, Prophet Jack (feat. Norah Jones)

Vocês sabem que bandas bacanas têm fãs chatos, né? Não sei como ninguém fez um estudo detalhado sobre isso ainda, vocês estão perdendo dinheiro. É porque não me sinto exatamente gabaritado, porque senão eu provaria essa tese. Basta pegar os fãs do Los Hermanos, do Belle and Sebastian e de meia dúzia de bandas indie que está tudo muito bem provado, é só assinar.

Mas então, imagina só a reação desse povo mala e xiita quando viram sua banda do coração dividindo o microfone com Mrs. Jones? Eita, foram espinhos para todos os lados. Antes mesmo de ouvir a música, já havia lido que era a pior faixa do Belle and Sebastian de todos os tempos. E de certa forma, o peso dessa opinião pesava todo para cima da pobre moça.

Agora, eu gostaria de saber: qual o problema com a gracinha da Norah, hein? Falta de talento não é, tenho certeza. Destoou do som dos escoceses? Também não acredito, a doçura da voz dela se encaixou bem na faixa, embora o Murdoch desse conta dela sozinho - isso é saudade da Isobel? Esse monte de cantora pelas faixas?

Eu acredito que o problema com a Norah Jones é pura e simplesmente a fama dela. A falta de status indie, de discos independentes e de shows para 200 pessoas. Portanto povo, Get Over It, please. Acho a faixa linda. E ponto.

Faixa 6: Write About Love.

"You've got to see the dreams through the windows
and the trees of your living room."

A faixa-título pra mim é o momento final do álbum. Sim, ainda faltam 5 faixas, mas tudo agora não passa de arranjos inexpressivos, música sem alma, canções que não fariam muita falta no mundo se não existissem. À primeira audição, tudo soou muito bacana para mim, afinal, esse é o primeiro álbum do Belle and Sebastian que presencio o lançamento - "The Life Pursuit" foi lançado em 2005, quando eu ainda não ouvia a banda. Mas depois de 2 ou 3 audições, comecei a notar que muitas das faixas eram tediosas. Não senti aquela vontade absurda de ouvir várias e várias vezes, excetuando "Calculating Bimbo". E pior ainda, o CD saiu na época em que eu tava descobrindo a música de Nina Simone. Foi uma disputa completamente desleal.


Faixa 7: I'm Not Living In The Real World.

Acho esta faixa uma bagunça, não gosto do refrão e tampouco deste vocal, que não sei de quem é. Se "Calculating Bimbo" está no extremo positivo, "I'm Living in the real World" está no exato extremo oposto. Espero sinceramente que eles não resolvam tocá-la no show, porque tem muita coisa dos álbuns anteriores que a gente prefere ouvir do que estas canções sem graças.

Voltando à história da entrada do Belle and Sebastian na minha vida - esse post tá uma zorra, Zeus do Olimpo! -, fui aos poucos baixando os álbuns da banda, depois da introdução feita pela Bia e, então, finalmente me deparei com o "If You're Feeling Sinister". Sim, foi um momento sublime. Perfeito na íntegra, ouvi à exaustão e de lá saiu a maioria das minhas canções favoritas da banda. Comecei a comprar os álbuns e dvd's e, quando percebi, tinha uma pequena coleção de material dos escoceses. Aos poucos, viravam uma de minhas bandas favoritas.

faixa 8: The Ghost Of Rockschool.

Falando nos shows, os escoceses desembarcarão em terras brasileiras nos dia 10 e 12 de Novembro para dois shows em São Paulo e no Rio, respectivamente. Eu sei que perder este show pode ser atestado como retardamento mental - não para quem perdeu o show do Damien Rice, né? -, mas eu ainda não tive certeza absoluta se poderei ir. Estou mobilizando empréstimos com agiotas e quem saiba eu desça a serra andando, não é mesmo? Essa vida de universitário não tá fácil.

Faixa 9: Read the Blessed Books.

Eu acho essa faixa muito bonitinha. Gosto do violão dedilhado e da doçura da voz do Stuart. E por falar nessa doçura tão característica do Belle and Sebastian, banda pouco indicada para diábeticos musicais, talvez aí esteja o meu problema parcial com esse álbum. Estou em uma época nada doce da minha vida, beirando a infelicidade, de verdade. E, embora escrever sobre o amor seja uma ótima ideia, não faz parte da minha verdade neste momento.

Então, não descarto a possibilidade de daqui a alguns meses (eu não posso falar anos; meu coração não aguentaria tanto tempo) pegar este álbum para ouvir novamente e cada notinha dele fazer o mais pleno sentido. A música, muitas vezes, segue a direção dos nossos sentimentos, e precisamos estar atentos a isso quando ouvimos certa banda.

Faixa 10 - I Can See Your Future.

Portanto, se fosse para escolher uma música do Belle and Sebastian para definir como ando me sentindo, seria essa aqui:

"I don't love anyone. Not even Christmas. Especially not that.
I don't love anyone."

Uma postura um tanto pré-adolescente revoltado, mas cada um cuida do que traz dentro do coração, não é mesmo?


Faixa 11: Sunday's Pretty Icons

Também gosto bastante desta faixa que fecha o álbum. "Write About Love" não é um disco ruim, se você conseguir separá-lo de uma discografia que inclui duas obras-primas como "If you're feeling Sinister" e "Tigermilk". Mas se um amigo, algum dia, quiser começar a ouvir Belle and Sebastian e pedir uma dica de por qual álbum começar, nunca a resposta será "Write About Love", porque ele não traz a essência de uma banda tão bonita e emblemática. Mas, se for possível deixar o saudosismo de lado, você pode ter momentos divertidos e agradáveis com esse sétimo álbum da banda. Boa audição!

domingo, 5 de setembro de 2010

10 coisas para fazer antes de morrer.

Não estava nos planos assistir a um filme triste neste fim de semana, mas parece que este é um dos típicos casos onde o filme te escolhe, e não o contrário. Sem sentimentalismo barato, sem pieguice ou dramalhão mexicano, "Minha Vida Sem Mim", de 2003, é o tipo de filme que te leva a uma reflexão verdadeira sobre sua própria vida, sobre o que você está fazendo com ela e o que você está perdendo, mesmo sabendo que seu tempo aqui é breve e finito.

Eu devia ter mantido uma garrafa de Gatorade por perto, porque confesso que acabei de assistir ao filme desidratado. É o tipo de película que comprime seu peito, que tira seu ar pela sinceridade do texto e das atuações. Foi doloroso assistir, essa é a verdade. Foi um soco na cara diante de tudo que passei nas últimas semanas (vide posts anteriores) mas, ao mesmo tempo, foi um impulso generoso para a minha necessidade gritante de viver.

Não farei sinopse, resumo, crítica, nada do gênero. Gostaria apenas de citar uma das cenas mais destrutivas para esse pequeno bobão sentimental que vos fala, quando Ann senta-se numa cafeteria, depois de saber que tem apenas 3 meses de vida, e lista as 10 coisas que ela precisa fazer antes de morrer. O mais perturbador nessa cena é que ela era uma moça jovem, com toda uma vida pela frente, mas que encontrava-se estagnada numa existência que precisou, paradoxalmente, da iminência da morte para ganhar vida.

Baseado nisso, fiz a minha singela lista das 10 coisas que pretendo fazer antes de deixar esse mundo. Porém, podem ficar despreocupados: eu não esperarei adquirir uma doença crônica para realizá-las. Promessa.

10 coisas para fazer antes de morrer.
  1. Amar. De todas as formas possíveis, com toda intensidade existente e inexistente. Sentir aquela necessidade sufocante por outra pessoa, que só sacia quando você está com ela, depositar todas os sentimentos puros e bons que existem dentro de mim em uma pessoa apta e merecedora de recebê-los;
  2. Estudar na Irlanda e conhecer a Europa. Ver o mundo, saber que a vida vai muito além dos quatro limites da minha cidade natal;
  3. Me esforçar cada vez mais para conhecer as pessoas que me cercam e me amam, e oferecer a elas apenas o que há de melhor em mim;
  4. Fazer algo de bom pelo mundo. Sei que soa piegas e simplório, mas é um desejo meu;
  5. Adotar 2 cachorros que receberão os nomes de Belle e Sebastian (houve toda uma reflexão sobre o segundo nome, mas resolvi que não o mudarei por insignificâncias);
  6. Fazer todas as loucuras das quais me privei (e ainda me privo), mesmo que seja fora do tempo correto, mesmo que eu pareça um tiozão besta se achando adolescente. Tudo que me faltou coragem quando era jovem ainda será feito;
  7. Mochilar pelo Brasil;
  8. Assistir aos shows de todas as bandas que significam tanto para mim, principalmente Kings of Convenience, Damien Rice e Belle and Sebastian. Mesmo que eu tenha que caçá-los pelo globo, já que perdi suas apresentações aqui no Brasil;
  9. Realizar-me profissionalmente em algo que realmente seja prazeroso, uma profissão onde eu me encaixe, me sinta cumprindo o que realmente vim fazer aqui;
  10. Deixar de usar boné. O que acabaria com o conceito e nomenclatura do blog, mas é necessário fazer sacrifícios na vida.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

fim da hibernação.

maybe the sun will shine today.
the clouds will roll away.

maybe i won't feel so afraid.

i will try to understand... either way.
(wilco)

Foram dias longos e frios de inverno, talvez o mais frio de todos que eu já presenciara. O vento cortante da serra congelava os traços de nossas faces, enquanto um arrepio mórbido e estranho subia-nos pela espinha, tomando conta de todos os sentidos de nossos corpos. Contudo, não foi apenas o frio exterior que caracterizou esse rigoroso inverno. Houve uma sensação térmica glacial que nem o mais felpudo dos casacos conseguiria conter, uma necessidade de calor humano que não emanou de canto algum. Não houve opção senão me recolher para hibernar.

Passei 28 dias trancados em minha caverna, um quarto escuro e úmido que incrementava a sensação de frio. Foram necessários muitos cobertores para amenizar tanto frio e confesso que esporadicamente eu mirava a janela, com uma esperançosa torcida para que flocos de neve embaçassem o vidro. Devaneios de uma mente um tantinho atormentada. Durante a semana, eu rolava a grande pedra que obstruía a entrada da caverna e ia cumprir meus compromissos com o trabalho e a faculdade. Não havia vontade, não era algo que me dava prazer, e executava tais obrigações já almejando a volta para a caverna. A trilha-sonora foi composta basicamente pelo álbum homônimo do Songs: Ohia. A melancolia de Jason Molina merecia até um "Música e Divagações" e esse álbum ganhou uma importância instântanea na minha discografia básica - já é, segundo os dados certeiros do last.fm, o álbum que mais ouvi nos últimos 6 meses.

A hibernação é, acima de tudo, um momento íntimo, de contato consigo mesmo. E, depois de tanto tempo, eu voltei a me sentir de uma forma que achei ter ficado num passado não tão distante. Voltaram as caminhadas nas tardes ensolaradas de domingo, as tardes vazias, o sentimento de solidão que faz o mundo parecer enorme demais. Os sentidos ficam aguçados, você passa a sentir as coisas de uma forma diferente, ver as coisas por uma outra ótica. A cabeça se torna uma metrópole em horário de rush, tamanha é a quantidade de pensamentos que a cruzam, se esbarrando com violência, causando um estúpida sensação de embriaguez, mesmo sem ver qualquer quantidade de bebida alcoólica há algum tempo. Não há tristeza. Você está apático demais para sentir-se triste. Há uma forte melancolia (des)colorindo tudo de bege, enquanto você sente a vida esvaindo-se lentamente pela fresta da janela entreaberta. Mas o inverno sempre passa, de uma forma ou de outra.

E quando os primeiros raios do sol primaveril lhe convidam, você se sente tentado a deixar o aconchego de sua caverna e ir apreciar o que o mundo tem a oferecer. Neste momento, eu estou voltando a me sentir vivo, a sentir o sangue correndo com pressa pelo meu organismo. Não sou o mesmo de 28 dias atrás, tenho novos pontos de vista, novos conceitos, novas verdades. E como principal lição disso tudo, aprendi que nunca devemos desaprender a ser sozinhos. A solidão está sempre nos espreitando, esperando um momento de vulnerabilidade para fazer moradia em nossas vidas. E quando você já está preparado para receber essa visita, tudo torna-se muito mais fácil de ser superado.

E quando o céu estiver nublado e os dias chuvosos parecerem não ter fim, há uma música do Wilco que sempre fará o mais perfeito sentido:

"talvez o sol brilhará hoje..."


ps: a analogia com a atitude dos ursos não tem qualquer relação com a quantidade exacerbada de pelos do meu corpo. sério. ¬¬'

domingo, 22 de agosto de 2010

conversas.

- Então é isso.
- Exatamente. Como diria Morrissey: “I was happy on a haze of a drunken hour, but heaven knows I’m miserable now.”
- Para com isso.
- O quê?
- Com essa coisa de ficar citando Smiths, Beatles e outras porcarias depressivas. Você está me irritando profundamente com essa mania idiota.
- Não é mania. Eles apenas expressam coisas que eu sinto.
- Você não sente nada. Do jeito que você é medíocre, sequer deve conseguir apreender o que eles querem dizer. Assiste a filmes com seu olhar superficial, lê livros de forma simplória, achando que são apenas um monte de palavras emboladas, sem entender o que está entrelinhas. Portanto, dá um tempo, okay?
- Ei, por que você está ficando tão irritado?
- Porque você é um ser humano frívolo e irritante, é por isso. E Eu não suporto mais esse monte de baboseira sem fundamento algum que você aponta como motivo dessa tristeza descomedida. Você é o típico caso do defunto que cava a própria cova, se enfurna lá e, em seguida, joga terra sobre o próprio corpo.
- Não fala do que você não entende.
- Eu entendo perfeitamente, não pense o contrário, seu covarde. Entendo com limpidez ímpar essas suas escusas esfarrapadas de que esta cidade está te matando aos poucos, mas que você está preso aqui, com raízes profundas demais. Suas raízes são a covardia, a falta de coragem de arriscar algo novo pela primeira vez. Não há faculdade ou trabalho que justifique esse definhamento interior pelo qual está passando. Isso é pura e simples covardia.
- Por que você fala com tanta arrogância, com tanta raiva?
- Porque eu sou o único que fala a verdade para você. Todos aí com esse papinho que você tem potencial, que tem que explorar isso. Pois eu vejo plenamente a mediocridade que você embala numa bonita ornamentação, mas que não engana quem consegue ver um pouquinho mais profundamente. Lembra-se da professora, que disse que você era um pavão? Ah, ela só queria explicar a metáfora, não é mesmo? Mas você sabe que não. Acho que mais alguém notou que você é um exibicionista dessa mediocridade tão sua, não é mesmo? E você sabe que aquilo te machucou, sabe que seus olhos encheram-se de água e você não conseguiu olhar mais nos olhos dela durante toda a aula. A verdade dói, não é mesmo, meu querido?
- Você não está ajudando muito.
- Você não merece ajuda. Perceba como faz três semanas que está afundado nessa maldita cama – excetuando os momentos em que cumpre seus honrados compromissos com os números e as letras. As pessoas estão indo. Não estão suportando essa sua inclinação estúpida por misericórdia. Ninguém vai ter pena de você. Não há motivo para ter pena. Erga-se e mostre-se um ser humano digno das pessoas que lhe cercam.
- Eu sou um ser humano da solidão e você sabe disso. Como a Ágatha disse da primeira vez que me viu: “O Rapha é um lobo solitário.” Sempre fui sozinho, sempre me virei bem comigo mesmo. Foi estupidez me desacostumar com isso. “Não é sadio acostumar-se com a luz quando somos fadados a viver no breu”, foi o que li por aí. Mas meu peito está voltando a ficar tranquilo novamente.
- A escolha foi sua, sabia?
- Não houve escolha. A solidão é imposta, não escolhida.
- Não foram poucas as pessoas que tentaram te amar, te dar um pouco de carinho, estar com você, te sentir. Mas do alto de sua arrogância, você expurgou todas elas, como se fossem bactérias nocivas a sua apreciada saúde.
- ISSO NÃO É VERDADE!
- Não me vem de novo com esse papo de que você não sabe por que acontece, que é um sentimento involuntário. E nem vem colocar a culpa novamente no pobre praiano lá, dizendo que ele te tornou uma pessoa fria. Isso é tudo baboseira que não cola comigo.
- Então, você me vê como um ser humano dos menos honrados, não é mesmo?
- Te vejo apenas como ser humano, nem menos nem mais nada. Só consigo te ver cristalinamente e tento te alertar pras armadilhas que estás armando para si próprio. Erga-se, rapaz. Já passou da hora.

Ele continua trancado no quarto. No escuro. Sozinho.

domingo, 15 de agosto de 2010

o marujo e o vaga-lume.


O barquinho cortava o negrume profundo com agilidade e astúcia. Não havia nada senão o escuro, um manto infinito que se estendia imponente diante de tudo que existia; não havia som senão a canção de ninar sussurrante do preguiçoso mar.

O marujo cochilava no fundo do barquinho, solitário, decidido. A escuridão era a única verdade que conhecia, o mar o único companheiro que já tivera. Seu coração era acostumado com a frieza da noite eterna e não lhe causava dor nunca ter visto nada com seus olhos cor-de-mistério.

Foi quando abriu os olhos e seu pequeno barquinho de madeira estava mergulhado em límpida fluorescência. O marujo soltou um urro assustado e tentou defender os olhos da luminosidade com o antebraço. Mas quando sua visão embaçada acostumou-se com a claridade, o marujo tomou ciência de tudo à sua volta. Banhado da luz esverdeada, curvou-se para fora do barco e viu seu rosto barbudo refletido na água negra, admirando-se com a plenitude de quem era.

O marujo não conteve a alegria que transbordava de seu peito. Dançou no pequenino convés do barco, à luz do vaga-lume, por horas e horas a fio. Considerou, no fundo do seu ser, o pequenino inseto como seu melhor amigo, a melhor coisa que já havia ocorrido na sua escura e taciturna existência pelo mar sem fim.

Mas os pés cansados, de súbito, pararam de se mover. A dança exuberante do marujo cessou abruptamente quando o pequenino ponto de luz moveu-se egoistamente em direção ao céu. Seus olhos marejados acompanharam a fluorescência esvanecer na única verdade que ele já conhecera: a noite.
De volta ao sufocante bréu, o marujo ensandeceu-se. Chorou copiosamente por horas, deitado na madeira fria do convés, sentindo o beijo misericordioso de uma brisa calma, que levava seu barco cada vez mais para dentro do oceano. Não é sadio acostumar-se com a luz quando somos fadados a viver no bréu, agora ele sabia. Decidiu que nunca mais seria capaz de viver no escuro e, numa medida desesperada, jogou-se no mar.

Ficou submerso por tempo suficiente para perder a consciência. Enquanto seu corpo forte enchia-se de água salgada, sua mente despertava para uma realidade iluminada, leitosa, límpida como uma manhã primaveril.

O marujo não havia mergulhado no mar. Havia mergulhado em si mesmo.

Retornou ao barco com dificuldade e, ao jogar-se no convés, contemplou a luz de um farol rasgando a noite, a quilômetros de distância. Inspirou uma grande quantidade de ar, revigorando seu corpo, abriu um tímido sorriso e soltou as velas do barquinho à ventura.

sábado, 31 de julho de 2010

à procura da catarse perfeita.

Não importa quantas pessoas você conheça, qual porcentagem você considere realmente como amigos e quantos são meros colegas e/ou conhecidos; não importa o quanto você se iluda com o frio contato virtual, quantas pessoas você siga no twitter ou adicione no orkut e no facebook: chegará um dia que você estará sozinho no negrume do seu quarto, sentindo a solidão expremer seus pulmões com volúpia, até o oxigênio tornar-se uma raridade mais valiosa que diamantes. Não Camelo, você está equivocado: não há nada de doce de solidão.

Nick Drake foi meu primeiro companheiro nessa noite solitária. No quarto escuro, vazio, sua voz reverberava pelos cantos, como se ele estivesse realmente presente, cantando aos meus ouvidos, dedilhando um violão velho e desafinado. Dizem que "Pink Moon" é uma obra complexa e, no alto de minha ignorância musical, nunca compreendi muito bem isso. Sabia que tinha sido gravado à meia-noite de uma noite de lua cheia, num estúdio vazio onde Drake, sozinho, com seu violão, deixou marcado para sempre seu último e derradeiro álbum. Mas creio que ontem, pela primeira vez, eu senti "Pink Moon". E foi uma experiência angustiante, como se cada acorde penetrasse na minha pele, comprimindo meu coração, bombeando-o desritmadamente. Se cheguei a compreender a grandeza dessa obra eu ainda não sei, mas sentimentos novos foram causados pela magnitude da genialidade de Drake.

Logo após, um velho conhecido tomou seu posto no banquinho, com suas roupas esfarrapadas e sua expressão taciturna. A meu pedido, Elliott tocou o "New Moon" na íntegra
, meu álbum favorito do cantor. Cantarolei baixinho junto com "Going Nowhere", aplaudi a urgência de suas interpretações em "High Times" e "Riot Coming" e me emocionei com a sensibildade de "New Disaster". Elliott parecia ser alguém que compreendia os sentimentos que a solidão causa e colocova todo esse peso em suas canções, em seus acordes e, principalmente, em sua voz. Hoje em dia, na minha opinião (o que não vale de nada, rs.), o Damien Rice é alguém que herdou essa habilidade com perfeição. Mas deixarei pra falar do meu amor pelo Rice em outra ocasião mais apropriada.

E então, quando minhas retinas também sentiram necessidade de serem entretidas, foi hora de escolher uma película para ser assistida. Pensei na
solidão pungente do robozinho Wall-E, no otimismo colorido de Amélie, no amor conturbado de Jack & Ennis... mas quem acabou desempenhando o papel de companhia ideal para essa noite foi uma cópia pirata sem-vergonha de Once (na versão brasuca, "Apenas uma Vez").

Once é um dos meus filmes favoritos, embora muita gente possa achá-lo indgno de preencher tal posto, dado a trama simples, o roteiro que beira o improviso, o orçamento mínimo, as câmeras tremidas, as atuações amadoras... Mas tudo remonta à premiação do Oscar de 2008, quando me deparei pela primeira vez com "Falling Slowly". Na verdade, eu tenho um hábito estranho de assistir aos Academy Awards, porque eu nunca assisto aos filmes antes, nunca tenho para o que torcer ou como julgar se o prêmio foi justo. Mas quando vi Glen Hansard e Markéta Irglová juntos no palco, eu senti tanta sinceridade naquela apresentação, tanta sensibildade nos acordes e no dueto, que comecei a torcer como se fosse presidente do fã-clube dos dois. Achava improvável a vitória, já que havia 3 canções de um filme da Disney na disputa, mas, felizmente, a Academia aquele ano me surpreendeu. E quando eles foram buscar o prêmio, confesso que trouxeram lágrimas aos meus olhos. Não sei se eles merecem algum mérito por isso, porque eu choro até com propaganda de margarina (rs.), mas foi um dos anos em quem mais valeu a pena assistir à premiação.



Eu só viria a assistir ao filme em dvd, pois já sabia que ele nunca entraria em circuito em Nova Friburgo [desce uma rodada de blockbusters pra galera!]. E o encantamento acabou de completar-se ao me deparar com um filme que superou todas as minhas expectativas. Tudo em Once é muito orgânico, muito verdadeiro, sincero. Não há os floreios de um musical hollywoodiano ou pomposas coreografias com toda a cidade dançando junto (embora, eu deva confessar, que Mary Poppins é um clásssico na minha vida e eu adoro um musical à la "Cantando na Chuva"). A música é embutida no filme de forma natural, é parte intrínseca das emoções, dos sentimentos e das expressões dos personagens. E como as canções são belas! Dos berros desesperados de Glen em
"Say it to me now" e em "When your mind's made up" - berros que ainda me arrepiam e trazem lágrimas aos meus olhos, mesmo depois da 5º vez que assito ao filme -, às divertidas "Broken Hearted Hoover Fixer Sucker Guy" e "Fallen From The Sky", passando pelas interpretações emocionadas de Markéta em "The Hill" e "If you want me", cada canção do filme é uma preciosidade, sensível sem ser piegas, emotiva sem cair na mesmice, no simplório. Glen e Mar falam de uma forma muito verdadeira de sentimentos pelos quais todos nós já passamos e suas intepretações são sinceras, como se as cenas fossem um ensaio privado no porão de suas casas.

A verossimilhança do filme é tão grande que, em certos momentos, ganha um aspecto de documentário e você precisa lembrar-se que aquilo é ficção. Glen e Mar são tão bom juntos que Dublin fica em segundo plano, apenas uma coadjuvante (das mais belas, é bem verdade): só há olhos para os dois personagens, sem nomes, o que nos ajuda ainda mais na aproximação com a história e com os fatos - é como se pudesse ser você ali, como se aquela história pudesse ser a da sua vida. Perdidos no turbilhão de seus sentimentos, presos ainda a suas respetivas relações passadas, o filme se desenrola não como uma história de amor, como a maioria acaba pensando, mas com foco na amizade que os dois cultivam, na ajuda mútua, no abalo que ela dá na vida dele, fazendo-o acordar de uma estagnação que obstruía todo seu talento e sua vontade de viver.



Todos esses atributos de Once, ontem à noite, foram primordiais para que eu fosse dormir mais tranquilo. As lágrimas derramadas em cada canção (dignas de causar uma desidratação) levavam consigo uma angústia que até agora não consegui compreender de onde veio ou porque veio. Mas, às vezes, não importa que haja 6 bilhões de pessoas do mundo: você está sozinho. Completamente sozinho. E tem que, de alguma forma, lidar com isso.

Pra completar, Glen e Markéta e seu fantástico The Swell Season estarão no Brasil nos dias 27 e 28 de Agosto para faze shows. Minha vontade, nesse momento, é trancar a faculdade e usar a grana para poder estar lá, abraçar esses dois e agradecer pela companhia na noite passada. Mas não estou podendo ser extremista a esse ponto ainda. Portanto, se você estará no HSBC Brasil ou no Viva Rio nos dias dos shows, mande lembranças minhas. E diga que sou muito grato. De coração.