quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Oito Canções para Dias de Chuva

(Caso não esteja chovendo quando estiver lendo este texto, clicar AQUI pode ser realmente útil. Assim como clicar no nome das músicas durante o texto pode tornar a experiência de lê-lo um tanto mais interessante. As imagens que ilustram este texto foram gentilmente roubadas do flickr. Os créditos para todas elas estão devidamente no final do post.)
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01. "Manhattan Skyline", Kings of Convenience

A janela salpicada de gotículas minúsculas embaçava a realidade exterior, ou assim lhe parecia, de pálpebras pesadas e pupilas desfocadas. Do terceiro andar, avistava abaixo um mar de sombrinhas multicoloridas, vermelhas-incandescente, azuis-turquesa, verdes-fluorescente, amarelas-pôr-do-sol, assim como guarda-chuvas sobriamente negros, que disputavam o espaço das calçadas, um borrão de cores sob a chuva forte, um encantado fluxo cromático camuflando as pessoas que se protegiam da água.


Monday After Rain

Ele tinha uma caneca à mão que exalava o cheiro doce de café por toda a extensão do quarto de hotel, mergulhado numa tênue penumbra acinzentada. Apoiando a testa na janela fria, triste, tristíssimo, bebericou o último gole do negro néctar. Vestiu um casaco sobre o suéter de lã, preparando-se para enfrentar o frio úmido de agosto. A chuva, lá fora, mantinha sua percussão ritmada nos telhados, sua música improvisada no vidro da janela, correndo pelas calhas e meio-fio, lavando a tarde plúmbea que morria lentamente. Ele, de mochila nas costas, passagem no bolso e guarda-chuva à mão, posicionou os fones do iPod no ouvido e, diante de um último olhar melancólico para o quarto, trancou a porta e ganhou o corredor.

02. "Furrows", I am Oak

Juntou-se à correnteza de guarda-chuvas e sombrinhas, um aglomerado heterogêneo de pessoas apressadas, irritadas, seus ternos impecáveis molhados pela chuva, os vestidos deixando à mostra canelas encharcadas. Os rostos, assombreados pela proteção à chuva, traziam nos traços uma melancolia pungente, olhos nebulosos que miravam as poças, acumuladas nas imperfeições das calçadas; lábios crispados em absoluto silêncio, como uma plateia extasiada que assiste ao concerto da chuva, batucando, delicada, nos guarda-chuvas. Ele tinha uma mão no bolso, passos incertos obstruídos pela multidão molhada, e teve dificuldade pra alcançar o ponto de ônibus.


Sob a proteção da marquise, cercado por propagandas luminosas e pessoas aborrecidas, fechou o guarda-chuva e aguardou. Os carros, na avenida, passavam, velozes, através das cortinas de chuva, deixando um rastro de frio que o fez puxar o zíper do casaco e esfregar as mãos com força, as bochechas, revestidas de barba espessa, avermelhando-se com a exposição ao vento invernal. O frio, todavia, não era só externo. Fazia frio também dentro dele, uma nevasca bruta que lhe cobria o coração naquela triste tarde chuvosa de agosto.


Uma vaga reminiscência surgiu em sua mente, de repente, despertada pelas gotinhas que acumulavam-se à borda da marquise e pingavam sincronizadamente. Era domingo à tarde, e estavam sentados num café, a algumas esquinas do ponto em que se encontrava agora, bem próximos, aquecendo-se mutuamente do frio. Ela adicionava umas gotinhas de adoçante à xícara de café e, na enevoada lembrança, no quebra-cabeça de imagens pouco nítidas, disse-lhe alguma irrelevância que configurou-se em sorriso. Um sorriso tímido, de lábios finos, de bochecha com covinhas, de beleza distinta, serena, de felicidade secreta, um sorriso que parecia preencher-lhe de contentamento. Foi quando descobriu que a amava, e se acometeu de um temor genuíno, que reluziu em seus olhos castanhos.

"Que tens, amado?", ela questionou, bebericando o café.

"Medo."


O microônibus estava vazio. No breve torpor do interior aquecido, pôde tirar o casaco, que colocou no assento ao lado, junto com a mochila xadrez. Fazia-se noite, lentamente, enquanto o ônibus cruzava a avenida movimentada; as luzes amareladas dos postes refletiam-se nas gotinhas de chuva acumuladas no vidro, criando uma constelação, um microcosmos que ele espreitava distraído. Pensava em sua casa, a algumas centenas de quilômetros de distância, no cheiro específico que ela tinha, na saudade de sua cama, seu travesseiro já adaptado à forma de sua cabeça. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, sentia vontade tremenda de ficar ali, tornar aquela cidade seu lar, pedir a ela um lugarzinho qualquer em seu apartamento no qual pudesse arrumar suas coisas e se aconchegar. Aquele sorriso... Podia acordar todo dia ao lado daquele sorriso, ele bem sabia.

Rain Bus Manchester Piccadilly

Mas ambos eram estrelas, ele sabia, em cosmos distintos - embora a velocidade do ônibus fizesse as gotinhas correrem pelo vidro e se juntarem, como uma explosão cósmica milimétrica, um encontro inesperado dos astros que nunca deveriam ter suas rotas adjuntas. Eram estrelas. A se afastar, na velocidade da luz, para nunca mais avistarem o brilho uma da outra.


A rodoviária interestadual fervia em movimentação, uma ebulição de pessoas, malas e histórias, encontros e despedidas, sorrisos e lágrimas. Ele dirigiu-se à plataforma F2, na qual o ônibus que o levaria de volta à realidade, ao dia-a-dia, já encontrava-se parado e de portas abertas. No burburinho das pessoas excitadas, mesclado com o barulho da chuva batendo contra a lataria do ônibus, ele acendeu um cigarro, de coração apertado, como se estivesse prestes a deixar uma parte de si para trás ao entrar naquele ônibus.

Um senhor aproximou-se, pediu-lhe que acendesse seu cigarro.

- Tem os olhos tristes, meu rapaz.

- Estou deixando algo importante para trás - ele respondeu com displicência, soprando a fumaça pro ar.

O senhor meneou a cabeça, pesaroso, e foi fumar seu cigarro na outra ponta da plataforma. Ele apagou a ponta do cigarro com a sola do tênis e subiu no ônibus, procurando o assento identificado na passagem.

Poltrona 16. Ele riu da ironia.



06. "Summer Bird Diamond", Seabear

Há três dias atrás, sentado à décima-sexta poltrona daquele mesmo ônibus, ele chegava à cidade, meio que por aventura, para conhecer uma menina com quem havia trocado emails por vários meses seguidos. Não sabia o que esperar, afundado no assento com as mãos suadas de ansiedade, até o ônibus estacionar na plataforma.

Estava parada ali, a pele alva roseada pelo frio, os enormes olhos verdes apreensivos a perscrutar cada pessoas que descia do ônibus. Protegia-se da chuva com um guarda-chuva branco estampado com milhares de coraçõezinhos avermelhados, e ele simplesmente sabia que era ela. Foi em sua direção, mãos no bolso, tímido, e ela abriu o sorriso de covinhas, dizendo:

"Bem-vindo a Macondo."

07. "Going Nowhere", Elliott Smith


Corria. As pernas a passos largos, como um atleta, a respiração descontrolada, apenas corria, sem se preocupar com os olhares curiosos que o observavam. Tinha dificuldade em abrir caminho através das pessoas, lentas, cheias de bolsas, atravancando o caminho, as calçadas, as esquinas. A chuva escorria por seu cabelo, molhava a roupa, não se importava, apenas corria, porque a cada passo sentia-a mais próxima e sabia que ela sorriria daquela forma e, de repente, ele se sentiria bem novamente. Achava que lágrimas escorriam de seus olhos, mas não tinha certeza, apenas corria, corria, até alcançar a porta e bater, com pressa, com ansiedade.


Street Light 3

08. "Cold Water", Damien Rice


Ela abriu a porta, vestida com roupas simples, os cabelos presos num rabo-de-cavalo. Espantou-se em encontrá-lo ali, ensopado da chuva, embora tivesse um guarda-chuva à mão. Ele agradeceu por ter chuva em seu rosto: ela não podia, dessa forma, ver as lágrimas em seus olhos.

- Tentei ir embora sem me despedir. Achei que seria mais fácil. Mas não consegui.

Covinha. Ela acariciou o rosto dele e deu-lhe espaço para que entrasse. Os dois, então, sumiram no calor do quarto.


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Playlist:
http://8tracks.com/rrrrapha/8-cancoes-para-dias-de-chuva

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Créditos de Imagens:
(juro que só roubei fotos de usuários que permitiam o download de suas fotos, rs)

"Monday After Rain", por sue tortoise
"Rain Buys Manchester Piccadilly", por Waka Jawaka
"Street Light 3", por Lisa Hindelang

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

(projeto feat.) Daqueles Dias Cinzas.

Daí que acordei com vontade de contar uma história. Não que isso seja novidade, acontece corriqueiramente.

Mas, enquanto a história vinha surgindo em minha mente, eu pensava em todos os amigos talentosos que tenho e que, talvez, assim como eu, estejam com vontade de contar uma história também.

Pensei, acima de tudo, no quanto poderia ser bacana juntar ideias, gêneros, experiências e personalidades e como cada pessoa poderia mudar esta tal história que desejo contar e transformá-la em algo inimaginavelmente novo. Não vamos, entretanto, nos deter às palavras: qualquer contribuição pode ser bem vinda: um desenho, uma foto, uma música, um verso, qualquer coisa que possa colorir essa história de cores sutis e ímpares.

projeto feat. (feat. de featuring, abreviação usada quando um músico faz participação no trabalho de outro) começa aqui, com o meu pontapé inicial. A qualquer momento, você (sim, você mesmo) pode receber o convite para encarnar alguém nesta história  e mudá-la de forma única. 
Então, bora contar uma história? 
O projeto feat., por enquanto, está acontecendo apenas no facebook, na fan page do sob o boné. Em breve, é possível que ele ganhe um blog próprio ou um tumblr. Lembrando que, quem tiver com vontade de participar de alguma forma, entre em contato comigo para enriquecer essa experiência. 
Abaixo, apresentamos o primeiro episódio de Daqueles Dias Cinzas, primeira série de contos escrito dessa forma cooperativa. O segundo episódio já está sendo trabalhado com a ajuda da minha linda e querida amiga Lisys Darcy. Portanto, fiquem de olho que vem mais por aí.
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01. lar

"É incrível como sua vida inteira pode caber dentro de meia dúzia de caixas de papelão", era o que eu pensava, sentado ao meio-fio enquanto o brutamontes retirava tudo que eu tinha da traseira da caminhonete e empilhava com precisão de jogador de Tetris  na calçada. O suor salpicava sua testa, enfurnado numa calça jeans suja e regata branca encardida, no braço uma tatuagem com o nome das filhas, contara-me durante a viagem. Era um tipão caricato, eu analisava, tirando o maço de cigarros do bolso e prendendo um com os lábios, conchinha com a palma das mãos para previnir a chama do ventinho frio que virava a esquina e, enfim, o prazer esfumaçado descendo pela garganta. Pediu-me um cigarro, sentou-se ao meu lado limpando o suor da testa com as costas da mão, um suspiro cansado e um papo qualquer para preencher o silêncio:

- Frio aqui, não?

- Um pouco.

- Conhece alguém nessa cidade? - questionou displicente, a fumaça do cigarro permeando o bigode espesso e adentrando as narinas enormes. - Não que seja da minha conta, claro que não, mas uma cidade nova nunca é fácil, não é mesmo?

- Ficarei bem - tentei responder sem ser desagradável, terminando meu cigarro e levantando. - Podemos começar a levar as caixas para cima?

Era um quartinho no terceiro andar, cozinha americana, banheiro minúsculo, chuveiro que não esquenta. As caixas foram empilhadas num dos cantos, agradeci, paguei ao brutamontes, lá se foi fazendo o chão vibrar ao descer as escadas. Tranquei a porta - duas trancas, uma daquelas correntinhas de correr - e, por um momento, apenas suspirei. O dia já ia morrendo devagar, o céu caleidoscópico emoldurado pela janela aberta e o vento entrava e girava a poeira que se acumulava no chão de tacos arranhados.

De uma das caixas, tirei um micro-system desses portáteis 3 em 1, que liguei na tomada, e alguns cds, poucos, só trouxe o que achava realmente necessário. Elliott Smith, "Twilight",



 o violão misturando-se aos poucos com o som da rua, vozes, buzinas, berros, a cidade! Fervilha a cidade ao entardecer, ecoando nas paredes dos prédios, nos motores de ônibus, nas motos velozes a costurar o engarrafamento.

Outro cigarro. Apoio-me à janela, os raios moribundos de um sol convalescente brilham em meus olhos profundamente acastanhados, o fim do dia, a melancolia sufocante do crepúsculo alteando em meu peito. Estou sozinho. É tão profundo o reconhecer da solidão, mas não é de causar medo. Retiro de uma caixa uma caneta pilot, a parede infiltrada fingindo-se branca na mão de tinta dada às pressas, escrevo:

Hello darkness, my old friend
I've come to talk to you again.

Pego de surpresa no reflexo do vidro manchado da janela, ali está, Edgar, o rosto ossudo escondido em barba de pelos emaranhados, os olhos perdidos, os cabelos raspados, o corpo frágil, não de doença, de falta de comer, mas de tristeza, de sofrimento. Não é fácil de me reconhecer naquilo, nas manchas arroxeas sob os olhos, na pele marcada pelos ossos pontudos, qual foi o caminho que me levou ali? Àquela expressão taciturna e débil, desaparecendo aos poucos no morrer iminente do dia.

As estrelas começam a salpicar no manto negro da noite. O celular toca, com certeza minha mãe, preocupada se já fui sequestrado ou se já comecei um depósito de drogas ilícitas ou... Não, é ele. O nome estampado na tela iluminada, na foto, um sorriso tímido, calmo, de lábios macios e falsos. Trim, trim, o véu de fumaça, cinco pontas de cigarro no cinzeiro improvisado na latinha de cerveja, e eu, ali, de cueca, deitado no chão, disfarço as lágrimas, como se alguém me vigiasse de algum buraquinho discreto na parede, das janelas do prédio adjacente. Ninguém se importa, sou eu, somente eu e aquele quartinho fétido que agora precisaria, forçadamente, chamar de lar. Um lar de caixas empilhadas, de torneira pingando, de teto mofado e de barulho, de muito barulho, de toda a cidade se acomodando naqueles poucos metros quadrados.

Arrasto-me para o colchão puído no canto do quarto, posto no chão, sem cama, sem estrado. Um cansaço constante pesa sobre meus ombros e, de barriga para cima, vislumbro o teto, insone, apático. As luzes da cidade costumavam ser os olhos lacrimejasos da esperança. Não passam, agora, de observadoras entretidas de minha solidão. As horas arrastam-se, os olhos avermelham-se, Morfeus, onde estás? É insportável, os trovões de luz neon no teto, 1:43, 1:45, 1:46.

Visto-me. A cidade me chama.