quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O Ranzinza Urso-Cinza: O Natal da Família Urso [parte 2]



Pequenos vaga-lumes brilhavam sincronizadamente na caverna da família Urso, que, protegida do frio da nevasca que tomava conta da floresta, tinha um aroma suave de nozes e amêndoas. Num dos cantos, o Alce Alceu, estático e em silêncio absoluto, com uma suspeita galhada revestida de folhas de pinheiro, ganhava frutinhas de enfeite, penduradas meticulosamente  por Horácio e seus primos polares, Paolo e Poliana. Os olhinhos de Alceu se mexiam, seguindo o movimento dos filhotes, e refletindo as luzes de natal.

- Por que você usa esses óculos? - Paolo questionou, desedenhoso, pendurando algumas cerejas na árvore medonha que possuía olhos.

- Tenho alguns graus de miopia - o ursinho-de-óculos explicou enquanto rodopiava em torno de Alceu com cipós coloridos.

- Eles te deixam com uma cara de besta - Poliana riu-se, alisando os pelos alvos, entediada.

- Assim como esse comportamento infantil também os deixa - Horácio retrucou.

- Ei, não fale assim com a minha irmã!

- Deixa ele, Paolo. Daqui a pouco ele vai lá choramingar com aquele pai balofo dele.




E os dois ursinhos gargalharam, maldosos, se afastando. Cinzento, irritadíssimo, acompanhava as crianças com olhos atentos. Estava prestes a intervir: não deixaria ninguém tratar seu filho daquela forma. Paolo, entretanto, dissimulado como uma raposa, abraçou a idosíssima tia Apolinária - uma ursa polar tão velha que Horácio cogitou a hipótese de ela ser sobrevivente da Era Glacial - e disse, com uma vozinha meiga e falsa:

- Onde foi o vovô Apolo, tia Apolinária?

A velha mordeu a boca desdentada, acariciando o pelo sedoso do sobrinho.

- Ele saiu pra buscar uma surpresa para nosso natal, queridinho. Ah, e por falar em surpresa... - ela disse de repente, levantando-se com dificuldade e caminhando para alcançar sua bolsa - ... veja, Cinzento, trouxe presentes para você, Eduarda e Horácio.

Cinzento, rabugento, tomou o presente e, com as garras afiadas, rasgou o embrulho de folhas coloridas.

- Meias? - resmungou, revirando, incrédulo, os três pares de meias felpudas.

- Sim, não são lindas? - tia Apolinária parecia muito satisfeita. - Conheci um grupo de ovelhas tropicais que morriam de calor e, portanto, doaram sua lã para que eu tricotasse essas belezuras.

- Nós somos ursos! Não precisamos de meia, não sentimos frio, humpf.

- São lindas, tia Apolinária - era Eduarda, vindo com uma deliciosa torta de nozes às patas. - Anda, Cinzento, experimenta para ver se cabe - ela mandou, fazendo uma careta imponente.

- Mas Eduarda, um urso de meia? O que pode ser mais besta? - ainda tentou argumentar o urso-cinza, mas sabia que divergir da opinião da esposa não era a escolha mais adequada. Nunca.




Cinzento sentiu-se muito estúpido com as meias três-quartos de listras multicoloridas, e seu mau-humor ganhou um agravante significativo. Foi esconder-se no canto posterior, longe das luzes, como que humilhado por aquele presente, o que causou risadas jocosas dos ursinhos polares Paola e Poliana. Horácio acompanhava tudo com os olhos confusos: ainda não sabia ao certo o que era o natal ou por que Danilo estava tão excitado com a data.

Vovô Apolo, um urso-polar um tanto mais velho que tia Apolinária, mas, ao contrário dela, de corpo robusto e jovial, adentrou a caverna com uma surpresa barulhenta e inusitada às patas: numa rústica gaiola de galhos, trancafiado e aflito, um peru batucava contra a jaula, tentando se libertar.

- Vejam só, eu trouxe o jantar! - Vovô Apolo anunciou, levantando a gaiola, orgulhoso.

- Por favor, vocês não vão querer me comer - disse o peru com desespero, soltando penas de aflição. - Eu estou muito magro, acho que tenho anemia. Se quiserem, dou o endereço de uma prima minha, um tanto mais gordinha e...

- Vô, não comemos mais carne aqui - Cinzento explicou, chateado, do seu cantinho escuro.

- Como assim não comem carne? - Vovô Apolo parecia ter ouvido o maior dos absurdos.

O peru respirou aliviado.

- Uma dieta à base de verduras é muito mais saudável, garanto - disse ele, como que perito em nutricionismo.

- E como pode estar gordo assim comendo só mato? - Poliana pontuou, intrigada.

- Desde que Horácio nasceu - começou a explicar Cinzento, em meio ao falatório -, paramos de comer carne, porque ele ficava assustado com o canibalismo.

Todos os olhares viraram-se para Horácio, julgadores, decepcionados - com exceção de tia Apolinária, que cochilava a ponto de roncar. O ursinho, desconcertado, limpou uma lágrima que teimou correr por detrás dos óculos, e subiu as escadas encrustadas na pedra para uma caverna adjacente, que lhe servia de quarto. Eduarda seguiu-o e, acarinhando os pelos do topo da sua cabecinha, disse com a voz doce:

- O que foi, meu pequeno? Não gostou do natal?

- Não! - ele respondeu, em meio a um choro doído. - O natal é um saco, e o papai tá irritado e sendo ridicularizado por minha causa.

- Horácio, não seja bobo. Seu pai sempre está irritado e sendo ridicularizado. Isso não é culpa sua. - Eduarda deu um beijo na bochecha do filhote, amorosa, e disse: - Você ao menos já descobriu realmente o que é o natal?

- Ainda não - resmungou fungando.

- Então vai lá.

Horácio voltou às escadas e, de repente, como se tivesse uma visão, uma iluminação, parou, de olhos arregalados: os ursos estavam rodeando a mesa, compartilhando a torta de nozes feita por Eduarda, rindo e felizes. Até o peru tinha um lugarzinho à mesa e bicava sua fatia de torta, muito satisfeito.

Entre as luzes reluzentes dos vaga-lumes, Horácio finalmente entendeu o que era o natal: aquele laço invisível que unia as famílias em um abraço apertado, que, pelo menos por uma noite, apagava as diferenças e tornava a todos um pouquinho mais pacientes. Mais que isso, natal devia ser, Horácio ponderava, aquela paz mansinha que encontrava no amor de seus pais e na vontade impetuosa de demonstrar esse amor.

O pequeno urso-de-óculos aninhou-se no colo do papai Cinzento, com um sorriso inocente: descobrira, de repente, que amava o natal.


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AGRADECIMENTO: Daniel Thurler, por, mais uma vez, aturar os pedidos do namorado chato e preparar esses desenhos lindos do Cinzento e sua família. <3

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Ranzinza Urso-Cinza: O Natal da Família Urso [parte 1]


Quando finalmente descobriu o que era o Natal, Horácio, o urso-de-óculos, já tinha quase dois anos de idade e deixava, aos poucos, de ser uma bolinha de pelos acinzentados sedosos para tomar formas do urso robusto que seria um dia - se, ao acaso, a natureza o moldasse às formas de seu papai Cinzento. Uma brancura espessa tomava conta de toda a floresta e o pequeno urso, com os óculos de lentes enormes cambaleando na ponta do nariz, deixava as marcas dos pezinhos na fina camada de neve que se acumulava sobre a vegetação rasteira, cobrindo os galhos das árvores e granulando o grande lago de minúsculos pontinhos alvos. O sol, entretanto, ardia em incandescência no céu muito azul e perolava o dia com uma luz leitosa e branda, feito uma cortina de seda flamulando à brisa.

Horácio ajeitou os óculos e parou muito ereto diante de um enorme tronco de carvalho. Bateu três vezes na madeira com as patinhas felpudas e, após o som ecoar vibrante no tronco oco, um pequeno roedor de pelugem ruiva surgiu, ofegante, num dos galhos mais altos. Era o esquilo Danilo.

- Ah, olá, querido Horácio! - cumprimentou com sua vozinha agudíssima - Fenha, a porta está aberta - convidou o esquilo, sem atinar para a impossibilidade do atarracado urso alcançar, a próprio mérito, o cume íngreme do carvalho.

- Veja, Danilo, a neve já se acumula em espessura suficiente para que empreendamos uma guerra de bolinhas gélidas e mortais! - excitou-se o ursinho, juntando com as patas um pouco da neve que estava a seu alcance.




Danilo franziu o cenho, abobado. "Não entendo nada que esse menino diz" pensou,  diante da eloquência precoce de Horácio. " Fai fer ele tem algum probleminha..."

- Agora não posso, amigo - respondeu, enfim, para qualquer fosse a proposta do urso. - Estou arrumando as malas pra fiajar.

- E qual seria seu itinerário, caro amigo?

- QUÊ? - gritou, lá de cima, o esquilo.

- Para onde você vai? - Horácio rosnou mais alto, como se seu tom de voz fosse o real imbróglio para a falta de comunicação.

- Ah, eu e a Fanussa famos foar para o sul, para passar o natal com a família dela. Não é marafilhosso?

- Natal, o que é isso? - indagou o confuso Horácio. - E como pretendem realizar a incrível peripécia de voar até o sul se, não obstante, não possuem asas?

- Adeus, Horácio. Mando-te um postal do sul - e o esquilo sumiu no interior do tronco de carvalho.

Não saber o que era o natal perturbou o esperto urso durante toda a manhã. Atravessando a fina camada de gelo e o tênue frio que lhe arrepiava os pelos escuros e espessos, dirigiu-se ao bosque das nogueiras, onde seus pais colhiam as nozes que os alimentariam durante o período de hibernação.

- Papai Cinzento, tenho uma indagação deveras pertinente para lhe fazer.

Eduarda riu, continuando a colher as nozes maduras, enquanto Cinzento girou os olhos para o límpido céu azul, enfastiado - era um tanto difícil ter um filhote dotado de demasiada perspicácia. Largou as nozes e, embora na maioria das vezes não soubesse responder às questões existenciais de Horácio, sentou-se para ouvi-lo.

- O que é natal, Papai Cinzento? - perguntou, como se saboreasse as letras daquela palavra que ainda não lhe representava nada.

Cinzento rangeu os dentes, para deleite ainda maior de Eduarda.

- Eu vou MATAR o Danilo!

Os olhinhos caramelados de Horácio apertaram-se por detrás dos óculos.

- Desculpe-me, papai, mas natal é alguma obscenidade?

- Claro que não, filhote - Eduarda aproximou-se, às gargalhadas. - Não comemoramos o natal porque o preguiçoso do seu "papai Cizento" - (e houve aqui um certo quê de sarcasmo) - não é capaz de abrir mão de um diazinho sequer de hibernação.

- Talvez a obesidade acentuada do papai explique essa fadiga constante - o urso-de-óculos ponderou com inocência. - Será que não poderíamos, papai, ao menos uma vez, comemorar o natal?

- NÃO! - Cizento urrou entredentes, como se somente a ideia do natal lhe causasse dor física.

Foi quando ouviu-se um ensurdecedor estrondo vindo de longe, como se o enfático "não" de Cinzento tivesse força suficiente para causar uma avalanche. O barulho de gelo chocando-se com a margem do Grande Lago, entretanto, não configurava mistério algum para os ursos adultos, que trocaram olhares de confidência. Cinzento, desconcertado e movendo-se depressa na direção das extensões do lago, seguido de perto por Eduarda e Horácio, exclamou, incrédulo:

- Gêlobus!

Os olhos arregalados de Horácio surpreenderam-se ao ver uma gigantesca pedra de gelo atracada à beira do grande lago, em cuja superfície dezenas de ursos branquíssimos, quase camuflados em contraste com o iceberg, despediam-se de quatro deles, que desembarcavam de malas às mãos.

- Vovô Apolo! - Eduarda gritou com euforia, correndo para saudar os recém-chegados.

- Quem são esses ursos-albinos papai? - o assombro de Horácio crescia mais e mais.

- Não são ursos-albinos, sim ursos-polares - Cinzento disse com um resmungo, ainda que orgulhoso de finalmente saber responder a um dos questionamentos do filho. Eles são nossos parentes e vêm de gêlobus, lá do polo-norte, para nos visitar.

Cinzento, após tais exposições, suspirou pesaroso; sabia que não havia escapatória: naquele ano, haveria natal na caverna da família urso.





[continua amanhã...]