segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

nostálgica pasárgada. *

The Country Schoolhouse, 1937
Maxfield Parrish

            Dizia ele, para quem quisesse escutar, sem medo de parecer louco, sonhador ou utopista, que já havia habitado Pasárgada. Sim, Pasárgada, aquela do Bandeira. Acrescentava, ainda, com a voz pomposa e os olhos expressivamente verdadeiros, que haviam aqueles sido os melhores anos de sua vida. Alguns duvidavam, sorriam zombeteiramente e deixavam-no falando sozinho; não se importava. Os que ficavam para ouvi-lo, acreditando ou não, embarcavam junto com ele numa viagem às lembranças nostálgicas de tempos idos.
            Era uma casa rústica, de formas grosseiras, a tinta branca descascada, o lodo e o mofo decorando suas laterais oblíquas. O sol mal havia nascido, mas o menino já se esparramava pelo amplo quintal, os pés descalços desbravando a terra, um mundo de sonhos escondidos sob o boné. Seria apenas um quintal malcuidado para um observador qualquer, com o matagal bruto rompendo pelas cercas de arame farpado e o caminho de pedras rudes levando à varanda da frente, mas não para o menino. Transformava o que via com seus olhinhos castanhos num mundo de cores cálidas, num reino de castelos majestosos e florestas encantadas. Descortinavam-se, lentamente, os encantos de sua Pasárgada.
            Era com destreza que se pendurava no pedregulho do fundo do quintal e transformava-o numa suntuosa caravela, navegando pelo mar bravio até alcançar inabitadas ilhas nunca dantes exploradas. O velho e infrutífero limoeiro servia-lhe de cabana improvisada, afinal, precisava proteger-se das bestas ferozes e famintas que rondavam a floresta — ou do bravejar trovejante de sua mãe, quando aprontava alguma traquinagem que excedia os limites da paciência dela. E quando sentia fome, embora a geladeira estivesse sã e salva na cozinha da casa, embrenhava-se na mata no intuito de caçar, armado com gravetos que se metamoforseavam nas armas de fogo necessárias para enfrentar os perigos da natureza selvagem.
            Havia uma obra inacabada nos arredores do quintal, lívida, concreto batido e nada mais. Era um segredo bem guardado pelo menino que, na verdade, ali era o castelo do reino, onde sua amizade com o rei permitia que vagueasse pelos salões ricamente iluminados e participasse dos mais bastos banquetes com a rica nobreza.
            Mas se Pasárgada é fuga, é exílio da vida que não se pode ter, como ensinou o mestre Bandeira, do que fugia um menino com toda a estrada da vida aberta diante dos seus olhos? Do que se exilava em meio às fantasias de sua meninice, por que abdicava veementemente da realidade e de suas experiências?
            A verdade é que, sob aquele boné, escondia-se um mundo de medos e temores, uma absurda falta de coragem de enfrentar o que já sabia estar rigorosamente escrito no livro da sua vida, com a caligrafia invejável do destino. E foi com as mãos trêmulas e suando, as pernas bambas e o coração palpitando feito tambor que, certa manhã, foi chamado pelo rei para uma reunião inadiável.
            — Não podes mais viver em Pasárgada, menino Raphael — disse-lhe o rei sem rodeios, confortavelmente sentado em seu trono dourado. — Cresce cabelo em teu rosto, tua voz soa feito viola desafinada, tua mente perde-se na confusão de pensamentos outrora inexistentes.
            — Mas Sua Majestade...
            — Sem objeções, menino. Ande logo, ande. Pega tuas coisas e vai viver tua vida.
            E assim, de mala e mágoa, atravessou pela última vez o caminho de pedras e deixou para trás o mundo de fantasias da sua infância. Hoje em dia, ele tenta se virar com as obrigações de ser adulto, com o medo de nunca atingir as expectativas que colocam sobre ele, com a iminência da infelicidade que se deita ao seu lado todas as noites. Ainda sabe perfeitamente o caminho, sequer precisaria de bússola ou mapa para chegar lá. Mas, se tentasse voltar, os guardas ao portão maciço nunca permitiriam que ele entrasse. Não tinha mais o que era necessário para viver em sua Pasárgada: a inocência a brilhar nos olhos.

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* Esse texto foi escrito atendendo às exigências de composição textual da faculdade no período passado, pelas quais fomos abastecidos com vários textos sobre o poema de Manuel Bandeira e, em seguida, precisaríamos criar o nosso, descrevendo a nossa própria Pasárgada. Contudo, pelo seu caráter bem pessoal — ou pela minha momentânea preguiça de escrever algo novo, fica ao critério de vocês —, achei pertinente postá-lo aqui no blog.