domingo, 3 de abril de 2011

1. david, the radio dept.




2:43. Choca-se com minha face pálida uma brisa outonal que tinge minhas bochechas de um tom rosado doentio. Faz frio na sacada encoberta do nosso apartamento e, movendo circularmente a taça onde ainda resta um tantinho do cabernet, contemplo a bebida trepidar graças aos arrepios cálidos que percorrem minha espinha e causam tremores em minhas mãos congeladas. Não tenho mais noção de há quanto tempo estou aqui, sentado nesta sacada imbecil, as pernas movendo-se feito pêndulos sobre a penumbra que embrulha a cidade. Ainda 2:43. O relógio não se move. Acho que estou levemente embriagado pelo vinho e olhar lá para baixo não parece uma boa ideia. Vertigens. Um movimento brusco do meu braço esquerdo e a garrafa de vinho quase vazia flutua como uma sacola plástica em direção à calçada deserta. Espatifa-se em bilhões de cacos, mancha a calçada com o sangue amargo que restava no fundo. Seus faróis abrem caminho no breu silencioso. Ele para o carro rente à calçada, desce e seus pés pisoteiam os estilhaços do que outrora fora inteiro. Sangram as solas do seu tênis, molham-se da tinta bebida. Ele inclina a cabeça e me vê. Pequeno desconcerto otimista meu, não pode ou não me quer ver há tempo. Sou um borrão desarranjado para ele, nada além disso.


Ele sobe as escadas e vem ao meu encontro na varanda. Em silêncio, apóia na sacada uma garrafa de vinho nova, lacrada. Seus braços envolvem-me na cintura com força, seu lábio flamejante incendeia meu pescoço e há um choque de temperaturas dentro do meu corpo.

— O que faz aí? — ele sussura no meu ouvido, seus dedos grossos tocando-me por baixo da camiseta. — Matar-se-ia de saudade de mim, é isso?

Apóio a taça na sacada, curvo um pouco a cabeça para trás, roço minha barba levemente na dele.

— Cheira a outros homens. Impregnado em você, feito lepra. Vá se lavar.

O sorriso é debochado, os dentes reluzem à lua. Unhas encravam-se em meu abdome, a língua desliza em minha pele macia, molham-na, cobrem-na da saliva imunda. Morde-me ferozmente os lábios, puxa-me da sacada e lança-me ao chão frio da varanda. Não posso despedaçar-me feito a garrafa. Não se quebra o que já está quebrado, destruído, em frangalhos. Lágrimas queimam minha pupila acastanhada, embaçam-me a visão como um pára-brisa à chuva torrencial de março. Lança o corpo sobre o meu, o peso de um caminhão a comprimir meu peito. O peso da culpa, da consternação, da passividade.

— Oh David, não vás olhar-me nos olhos?

— O que temos aqui? O que é isso que vivemos? Explica-me o porquê desta dependência que não me deixa cuspir-te na cara, como mereces.

Ele lambe o sangue que tinge gentilmente o corte em meu lábio feito por sua mordida. Fricciona os lábios como que me saboreando, a ferrugem a espalhar-se em seu paladar. Os enormes olhos amendoados sobre mim com a opacidade já inerente. Desabotoa a calça jeans e sorri voluptuosamente.

— Não se explica o amor, David. Não, não se explica.

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A claridade leitosa que explode pelo teto de vidro é um enorme lençol branco sobre nossos corpos nus e inertes. Movo imperceptivelmente a face em sua direção para poder apreciá-lo. Gosto quando dorme. Do seu peito inflando e desinflando e de ver a vida a entrar e sair por suas narinas. Agrada-me com infantilidade o movimento involuntário de suas pálpebras fechadas, que tremelicam como se fosse acordar, embora nunca acordasse. Ainda sonhava, coloria-se das cores pungentes dos sonhos que outrora me contava com sua narrativa impressionada e envolvente. Mas gosto ainda mais de vê-lo dormir porque, nestas horas, vejo o homem que amo. Apenas quando a ingenuidade pode voltar aos traços firmes do seu rosto, disfarçada de sono, quando abraçado ao travesseiro e vivendo num mundo particular, sei que não pode mentir para mim ou me machucar. Toco-lhe os cabelos negros, o peito intumescido, os lábios firmes e grossos e amo-lhe, oh deus, como lhe amo quando dorme. Choro de tanto amor por um homem que só existe dormindo. Fico, não me vou embora e deixo toda uma vida destruída pra trás pelo simples prazer de vê-lo a dormir. Durma, meu homem, durma que esta é a única hora em que ainda te reconheço.

Visto uma cueca e deslizo entre os lençóis brancos até a cozinha do loft para preparar o café. A luz transborda pelos poros da casa, tudo é alvo e embaçado, tudo é subjetivo e irreal. Ele parece-me lindo visto por entre os lençóis de luz. Alcanço a Nikon e guardo sua serenidade em pedaços de papel. Fotografo a paz sublinhada nos traços do rosto bruto, a masculinidade esculpida nos ombros, a imponência do posicionamento das pernas entreabertas ocupando quase toda a cama. Dilatam-se as pupilas e, após um instante de reconhecimento, sorri-me com a pureza que ainda traz do mundo particular dos sonhos.

— Não está a fotografar-me durante o sono novamente, está, príncipe?

E eu apenas sento-me em uma cadeira, com a câmera apoiada no colo, e sorrio-lhe de volta, com os olhos ensopados.

— Parece um anjo envolto de toda essa luz. Não quis desperdiçar tal fotogenia.

Sirvo duas xícaras de café e trago-lhe uma à cama. Seu corpo envolve-me e ele encosta sensivelmente a barba em minha nuca. As canecas esvoaçam o vapor da bebida quente, o aroma aglomera-se nos lençóis de luz e a manhã de domingo brilha em sua palidez onírica.

— Encontrei a resposta para as perguntas de ontem.

— Conte-me — disse ele, abraçando-me com carinho e bebericando o café.

— Gosto de te ver dormir, Michael.

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