segunda-feira, 14 de junho de 2010

em 20 anos.

Projeção A

Giro a chave na fechadura e empurro a porta, exasuto. O silêncio impregna cada centímetro da escura sala, enquanto me movo para o interior do apartamento. Fico aguardando a Belle vir correndo em minha direção pelos corredores, deslizando pelos tapetes, ansiosa por um afago no focinho comprido. Um rápido relapso de memória. Uma Belle massacrada pela osteoporose levanta a cabeça na varanda, observa com seus enormes olhos amendoados quem acabara de chegar e, fatigada demais pela doença, volta a deitar-se. "Lembrar de marcar veterinário", anoto em minha mente abarrotada de informações inúteis, enquanto largo a papelada da escola sobre o sofá e vou à cozinha beber um gole d'água.

A secretária eletrônica marca zero recados, o que não me surpreende. Dirijo-me ao aparelho de som e coloco um dos meus velho álbuns de Tom Jobim num som ambiente que não incomode os vizinhos, mas que possa ser ouvido de qualquer cômodo do apartamento. Abro a geladeira e contemplo enlatados, congelados e afins. Não tenho vontade de comer nada daquilo. Perco o apetite e direciono-me para o banheiro. Gasto algum tempo no banho, a cabeça borbulhando de pensamentos desprazerosos. Tudo é muito só, escuro, taciturno. A água muito quente não faz ir embora a sensação de frio que deteriora, lentamente, o pouco de esperança que me resta.


A cama enorme e fria convida-me a deitar-se. Pego algumas provas para corrigir sob o edredom, com Tom Jobim sussurrando ao fundo: "Fundamental é mesmo o amor: é impossível ser feliz sozinho."




Projeção B

Giro a chave na fechadura e empurro a porta, exasuto. O som da televisão vem ao meu encontro, enquanto ele vira a cabeça e me lança um enorme sorriso. Belle, deitada em seu colo com toda a preguiça do mundo, começa a abanar o rabo e a latir de contentamento. Largo a papelada da escola sobre o outro sofá, dou-lhe um beijo amoroso e acaricio o focinho comprido e muito lívido de Belle. "Você demorou tanto que não consegui esperá-lo para jantar, Rapha", ele me diz com a voz doce, deitando a cabeça em meu ombro. "Ah, pois é. Acabei me enrolando com alguns alunos depois da aula. Estavam com dúvidas para a apresentação de um seminário amanhã. O que tem pra comer?". "Como cheguei cedo, fiz aquela lasanha de quatro queijos que você tanto gosta". "Ah, não acredito! Você não existe!", exclamo, levantando-me e indo buscar uma boa porção da massa.

A secretária eletrônica marca quatro recados e, entre eles, há um de um grande amigo marcando um jantar em sua casa no fim de semana. Confirmo que estaremos lá, já me servindo de uma nova porção da lasanha. Gasto, em seguida, algum tempo no banho, a cabeça completamente relaxada em meio ao vapor da água muito quente. Ele entra no banheiro para escovar seus dentes, Belle seguindo-o de perto. "Já vou deitar, tá bom? Amanhã terei que ir um pouquinho mais cedo para a firma. Quer que eu vá de táxi e deixe o carro para você?". "Não, pode ir com o carro que eu pego uma carona com a Lu". "Então tá bom. Boa noite."

Alguns minutos depois, entro no quarto iluminado tenuemente pelo abajur. Ele já adormece num sono tranquilo e sereno, acompanhado por Belle, qie dorme no tapete ao lado da cama. Mergulho sobre o edredom, abraço-o e, em poucos minutos, o sono me pega também.


Projeção C

Giro a chave na fechadura e empurro a porta. Embora exausto, largo a papelada da escola sobre o sofá e corro para ligar o computador. Aquilo martelara na minha cabeça durante todo o dia e, embora tudo fosse embaçado pela bruma do tempo, tinha quase certeza de que não estava equivocado. Belle coloca-se ao meu lado, lívida por um afago e, enquanto minha mão esquerda manuseia o mouse com perspicácia, a direita acaricia seu focinho comprido e feliz.

Como sequer lembro o nome, necessito da ajuda de um site de busca para encontrá-lo. E qual é minha surpresa quando as letras na tela, formando o título "Sob o Boné", confirmam minhas expectativas: aquele pedaço virtual tão importante da minha vida ainda está "vivo".

Gasto inúmeras horas relendo cada um daqueles textos quer retratam tão perfeitamente as coisas pelas quais havia passado, sentindo um ar nostálgico ganhar conta de mim lentamente. É profundamente revigorante relembrar tantas pessoas que passaram pela minha vida, todas aquelas situações que, juntas, formavam o ser humano que eu era agora.

Então, num dos posts, esbarro com expectativas que havia feito para a minha vida há 20 anos atrás. Leio tudo atentamente e rio de mim mesmo, sabendo que, naquela época, não podia entender que é impossível prever aquilo que ainda não havia sido escrito. E que essa incerteza do que está na próxima curva da vida é o que nos faz seguir sempre em frente, ávidos pelas surpresas que podem nos estar reservadas.

Desligo o computador e vou cuidar da minha vida.




2 comentários:

M. disse...

rapha, me desculpa, mas você vai ter cara de marginal gordo. HIOAEHIOAEHIOAEHIOAHO beijos da esposinha que vai estar te esperando com um pirex gigante de lasanha de quatro queijos pra quando voce chegar do trabalho... uma pena voce nao gostar do que eu tenho pra te oferecer ninfomaniacamente IOHAEHIOAEHIOAHIOEHIOAEHIOAHIO

rapha. disse...

Sabe que eu fiquei puto com esse programa depois que vi essa projeção aí, né? ¬¬' estou pensando em entrar na justiça, porque não é possível que eu vá virar aquilo ali.. uahuahuauhauha

mas é agora que eu eu vou ver se seu amor é incondicional mesmo... imagina só, chegar todo dia em casa e estar aquela trolha ali jogada no sofá, bebendo cerveja e vendo jogo...
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

eu acho que sua projeção de 20 anos lhe reserva coisa melhor.. huahuauhauhhau

beijo beijo estrellinha =)