quarta-feira, 25 de julho de 2012

Fael e o Cão

Entrava ele na cozinha novamente, as mãos suadas entrelaçadas nas costas, os olhinhos cor-de-oliva misteriosos e complacentes. Fitando-o com o canto dos olhos, a mãe incrementava o conteúdo de uma das panelas sobre o fogão a lenha, que aromatizava a casa com o cheiro de janta fresca. Ele já dava meia volta para se retirar novamente à francesa quando ela impediu, de mãos na cintura e postura severa:

- O que você quer, Fael?

- Eu? - surpreendeu-se, parando de súbito. Balançou-se para frente e para trás nas canelinhas finas, de mãos no bolso. - Nada, mãe. Quero nada. Nadinha.

Ela lançou um olhar descompromissado pelo basculante da cozinha, avistando o portão da frente de casa. Seu cenho franziu-se, as sobrancelhas juntaram-se, e ela ralhou, gesticulando com uma colher-de-pau na mão:

- Olha, Fael, se você passar com aquilo para o lado de cá do portão, juro que boto você e ele para correr a chineladas. Você ouviu bem?

- Mas mãããe... - Fael ainda tentou argumentar. Era, todavia, inútil, e logo percebeu, diante da carranca dela, que o mais prudente era correr para fora dali.

Ele esperava comportadamente sentado ao portão, silencioso, calmo como o entardecer que coloria o domingo de amarelo pálido. Mas quando Fael, cabisbaixo, surgiu no quintal, ele pôs-se nas quatro patas, a língua para fora da boca, o rabo felpudo sacudindo no ar no genuíno contentamento de avistar o menino novamente. Fael abriu o portão e o cão, preto, enorme, adiantou-se em lamber-lhe o rosto, tomado de saudade - ou talvez de preocupação com a possibilidade de nunca mais ver o menino.

- Ei, Tobias, pare com isso, rapaz! - Fael tentava controlar as investidas do cão, que ziguezagueava entre suas pernas numa explosão de alegria. - Ela não permitiu que fiquemos aqui, Tobias.

O cão parou de súbito, como se realmente compreendesse a gravidade do que Fael narrava. Sentou-se, olhando para o rosto do menino, soltando um grunhido fino e pesaroso.

- Não, não pense isso da mamãe, Tobias. É uma boa mulher, no final das contas. Sentirei saudade dela. - Ajeitou a boina de camurça na cabeça, coçou o nariz sardento com a ponto do dedo e anunciou: - Vamos, já é hora, companheiro.

Ganharam as calçadas, Fael seguindo à frente, com as mãos no bolso do macacão xadrez, reflexivo, seguido bem de perto por Tobias, que farejava o chão arduamente, de orelhas eriçadas, talvez com medo de que o menino evaporasse e se encontrasse sozinho de novo. A cidade pairava num melancólico silêncio dominical, numa falta de movimento permeado apenas por três senhoras mexeriqueiras que cochichavam na praça, um menino que empinava sua pipa no céu muito azul e um casal de namorados que passeava de bicicleta na rua de pedras. Fael e Tobias passaram pela barbearia do Seu José, fechada, pelo armazém do Seu Juca, também fechado, e pela igreja, na qual o padre Frederico, à porta, acenou com simpatia para o menino. Era um dia propício a aventuras, pensava o menino, com um sorriso tímido nos lábios.

Mergulhada em fumaça e marasmo, numa quietude plácida e absoluta, a estação de trem efetivava a calmaria incomum daquela tarde. Fael dirigiu-se à bilheteria e, após pigarrear, pediu:

- Moço, eu gostaria de dois bilhetes, por favor.

O bilheteiro, que cochilava preguiçosamente no interior da cabina, precisou inclinar-se no banco para avistar quem perturbava seu sono. Um menino e seu cão sorriam-lhe no pátio ensolarado, e o primeiro esticou-se na pontinha dos pés para entregar-lhe algo.

- Eu não sei quanto custa os bilhetes, mas creio que este tanto de jujubas deve ser o suficiente, não é mesmo?

Tobias emitiu um latido como quem concorda com o que fora dito, mas o bilheteiro não teve a mesma opinião. Devolvendo as guloseimas, irado atrás do bigode espesso, resmungou:

- Eu estou trabalhando, moleque! Não tenho tempo para traquinagens.

- Mas moço, tem da jujuba amarela, que é a mais gostosa de todas... - tentou argumentar o menino.

- Chispa daqui, menino! Anda!

E, enquanto o bilheteiro voltava à sua soneca, Fael guardava as jujubas de volta no bolso, desolado. Sentou-se no chão da estação, ao lado de Tobias, acariciando-lhe o pescoço e ponderando:

- Não, Tobias, não há com o que se preocupar: assim que o trem chegar, eu falarei com o maquinista e ele deixará que viajemos com ele, você vai ver.

O trem, contudo, demorou a chegar. O vespertino e pálido sol ausentou-se e uma noite fresca configurou-se quando, exausto, o pequeno Fael adormeceu ali, sentado, desprotegido, um aventureiro à mercê de sua jornada. Ao zéfiro constante que acompanhava o transformar da luz do dia em escuridão, o menino tremia de frio, despreparado para encarar a etapa noturna de sua fuga. Mas Tobias sabia que cabia a ele cuidar de Fael. Tinha ciência de que o menino era, agora, a família que nunca tivera e que poderia oferecer toda sua fidelidade a ele, todo o amor que mantivera guardado enquanto vagava pelas ruas sozinho. Deitou-se, então, bem próximo de Fael, com seu focinho quase a encostar em seu rosto, com seus pelos negros e seu corpo rechonchudo a aquecer o corpinho magrelo do garoto.

A mãe, obviamente, logo soube que seu filho encontrava-se dormindo com um vira-lata sarnento na estação do trem. "Que tipo de mãe é essa, que deixa o filho solto pela cidade, dormindo na calçada, pelo amor de Deus?", ela ouvia comentarem, enquanto corria o mais rápido que podia para a estação.

- Fael, Fael, meu filho! - gritou ela, espantando o cão com o pé e tomando o filho nos braços. - Não assuste mais sua mãe desse jeito, menino!

Tobias acompanhou toda a movimentação de mãe e filho com olhos atentos e excitados. Sentou-se, muito aprumado, de focinho erguido, como que esperando uma medalha pelo zelo com o garoto. Mas não houve medalha. A mãe se afastava, com o garoto no colo, segurando-o com força, destinada a nunca mais correr o risco de perdê-lo. A aventura havia acabado. Lá se ia a única família que já tivera, a única companhia, o único que já se preocupara com ele. Tobias, parado à estação, chorou baixinho. De olhos rasos de lágrimas doídas, lá se ia Fael, nas garras insensíveis da mãe.

Subitamente, entretanto, olhou pro rosto molhado do filho, precariamente  iluminado por um poste que se erguia na estação. Parou. Lançou um olhar para trás.

- Qual o nome dele, filho?

- Tobias - Fael respondeu em meio a um soluço.

Ela virou-se, curvando o corpo e fazendo um sinal com a mão.

- Vem, Tobias. Vamos para casa.

E o cão, abanando o rabo violentamente, saltitante e feliz, seguiu sua nova família de perto, a caminho - pela primeira vez na vida - de uma casa.


The Homeless Dog, por DeViLtEcH
____________________________


Quando tive a ideia para esta postagem, achei que seria uma boa oportunidade para ajudar a divulgar pessoas e entidades que têm, como objetivo, ajudar e cuidar nos animais sem dono. Por isso, pedi aos amigos do facebook que me enviassem links e endereços nos quais os leitores do blog poderiam se informar sobre a doação de animais.


O que acho incrível é que vejo sempre várias publicações de animais mutilados e maltratados no facebook. Mas, quando a proposta é realmente ajudar, divulgar ideias que não esbarrem no sensacionalismo, a resposta das pessoas é praticamente nula.

Fica aqui, portanto,  os links que me enviaram. Caso alguém mais tenha o contato de instituições preocupadas com a causa e queira que eu inclua na lista, entre em contato que adicionarei com muito prazer.

Gatos Campo de Santana:

Corações sem Dono:

Clube dos Vira-Latas:

Clube da Patinha:

Confraria Miados e Latidos:

Um comentário:

Lisys Darcy disse...

Adoro alguns termos que você usa como: ralhou, carranca, ziguezagueava, pesaroso... eriçadas.

Pagar os bilhetes com jujubas... ♥

E a gente sempre aprende uma ou muitas palavras novas lendo seus textos: zéfiro.

Lindo, lindo... família se escolhe também. Ótima foto... ele só está esperando ser convidado. ^^