quinta-feira, 15 de março de 2012

Esperanza

Pow.

Ecoa, na rua vazia, silenciosa, o som oco. Custa-me entender o que se passa: é meu corpo jazido ali no chão, inerte? É meu coração que palpita vorazmente diante da dor que se alastra por toda a cabeça, diante do véu de inconsciência que sutilmente começa a cobrir meus olhos? É minha face, amedrontada, pega de surpresa, que despenca em direção ao chão frio, que se choca no concreto inexorável?

Não me recordo do que estava fazendo ali, àquela hora alta da noite, quando o latido constante dos cães insones era a única serenata para lua. Numa bruma densa, leitosa, identifico o rosto sorridente de Ezequiel, a mirar uma foto que eu havia tirado do bolso da camisa. Quando aquilo acontecera? Havia passado minutos ou dias desde que ele me apertou forte contra o peito, beijou-me os lábios e disse, com os olhos úmidos, a foto presa entre os dedos como um tesouro do qual não abriria mão:

- É nossa pequena garota, amor.

- Sim, sim, é ela. Desde que bati os olhos, entre todas aquelas crianças necessitadas e sofridas, não pude pensar em outra coisa. Ela me mirou com seus olhinhos de profundo negrume, duas jabuticabinhas reluzindo à luz, e perguntou se agora eu era o papai dela.

Quando aquilo acontecera? Tudo é tão branco e abstrato, feito um sonho. Minha cabeça está tão molhada. Deduzo uma chuva que não existe, um vazamento do teto, embora sobre mim só haja o céu estrelado. Há a lua, seu brilho roubado, sua luz gelada alumiando os caminhos tortuosos da madrugada. O vazamento não é do teto; a água que escorre pelos fios do meu cabelo sai da minha própria cabeça. O latido dos cães se torna mais alto, minhas pupilas se dilatam, vejo entre a neblina densa pés que me rodeiam.

- Ela tem o mais lindo dos nomes – sussurrei ao ouvido de Ezequiel, seus olhos frágeis ainda a admirar a pequena foto tirada às pressas.

- Qual é? – questionou-me com a voz urgente, emocionada.

- Esperanza. Parece que os pais eram bolivianos, chilenos ou coisa que o valha.

- Esperanza. – repetiu ele. – Esperanza. É realmente lindo.

Dei-lhe um beijo. Despedi-me. É tarde, ele me disse, fique, durma aqui, respondi-lhe que não podia, que tinha coisas a resolver e que amanhã bem cedo iríamos ver nossa Esperanza. Advertiu-me para tomar cuidado, beijou minha cabeça com zelo e deixou-me descer as escadas. Não era longe dali que me encontrava agora, deitado no chão, por cansaço ao que me parecia. Não sentia o resto do meu corpo, tudo era dormência, tudo era inexatidão, a não ser os pés que me rodeavam.

É forte, violento, inesperado. Sinto os dentes bambear na boca seca, a carne rasgar-se feito papel, os músculos enrijecerem contra a forte pancada. Ouço, no meio da conturbada dor, a voz dele, gritando, cuspindo fúria e indignação:

- Viado de merda! Viado de merda!

- Pai, por favor, não – pareço dizer, embora não sinta os lábios mexerem. – Por favor, pai, perdão.

- Não foi essa a educação que te dei – a cólera e a saliva umedecendo o bigode. As mãos brutas, grandes, começam a tirar o cinto da calça, o desespero se apodera de mim.

- Pai, não, pai, por favor, por fav--

Não é meu pai. Não. Papai está morto. Velei o corpo, segurei as mãos frias e desesperadas de minha mãe, à beira do caixão madrugada adentro. Não é papai, Deus o tenha. Não é.

Ele me segura pelos cabelos ensanguentados, aproxima minha face desfigurada da dele, cospe, estapeia-me. Olho-o nos olhos. São de um azul magnífico, profundo, oceânico. Mas estão tingidos com ódio. Emoldurados de ira doentia, apoderados de cólera. Olho, subitamente, com dificuldade, em volta. Não está sozinho. Pares de olhos azuis reluzem na noite profunda, feito faróis, revezando um pedaço de pau que lhes serve de arma. Há tanto ódio ali. É quase tateável, concreto, lívido. É com as mãos cheias de ódio que outro toma o bastão de madeira e parte em minha direção.

De repente, por entre as sombras confusas do beco, avisto minha mãe sentada numa cadeira da cozinha, os olhos bondosos postos sobre um rapazinho que se embrulha entre os braços dela.

- Mamãe, por favor, ajude-me – imploro, com o gosto de ferrugem alastrando-se em minha língua. – Sou eu, mãe. Seu garoto.

Ela não me ouve. O choro doloroso do menino em seus braços parece ser mais urgente. Ele molha a camisa dela com lágrimas ingênuas, puras. Ela lhe acarinha os cabelos, beija-lhe a testa, diz baixinho:

- Não fique com raiva do seu pai, meu querido. Já há ódio demais neste mundo, não precisas ser mais um a cultivá-lo.

- Ele nunca vai aceitar, mamãe – retruca o menino, perturbado.

- Dê um tempo a ele, tá bom?

- A senhora me aceita? – pergunta, assoando o nariz com as costas da mão, dono de uma  inocência que se refletia nos seus olhinhos avermelhados do choro.

- Não sejas bobo, meu amado – replicou a mãe, um sorriso descolorido na ponta dos lábios. - Não há o que aceitar. Eu apenas te amo, por completo, incluindo todas as coisas que és. Amo-te, meu pequeno. Nunca te esqueças.
Nunca esquecerei, mamãe.

Lentamente, deitado na rua de pedras, com os olhos voltados para o céu estrelado, começo a ficar imune ao ódio deles. Não podem mais me atingir, não importa seus bíceps avantajados, seus golpes treinados, suas pauladas furiosas. Não ouço mais as batidas maçantes contra a minha carne, só ouço a voz desafinada de uma menininha de marias-chiquinhas e olhos negros como jabuticabas:

- Você volta amanhã mesmo, não volta?

- Sim, Esperanza – garanto a ela, abaixando-me para olhá-la nos olhos. - Amanhã você conhecerá seu outro papai.

- Oba! – ela vibra, colocando os bracinhos magricelas para o alto. - E você promete que nunca mais me deixarão sozinha?

- Prometo sim, minha menina. Você agora tem a mim.

Uma lágrima embaça meus olhos já quase sem vida.

- Por favor, Olhos Azuis. – imploro com o resto de ar que há em meus pulmões. - Já chega. Tenho que buscar minha Esperanza amanhã cedinho. Por favor, já chega. Deixe-me ir agora.

Ele não parece me entender; a única coisa que seus olhos azuis compreendem é o ódio. Uma última paulada maldosa, desnecessária, indica que estão saciados e saem badernado pela noite, barulhentos, regozijados, deixando-me ali, deitado inerte entre sangue e sonhos.  Não sinto nada. Não há mais dor. Só penso no quão tarde já é, puxa! 

Fecho os olhos. Preciso dormir logo. Amanhã acordarei cedo para ir buscar minha menina, minha pequena Esperanza.

Tears of Rage
Paint and rust on metal



 

4 comentários:

Léo libanio disse...

"- E você promete que nunca mais me deixarão sozinha?
- Prometo sim, minha menina. Você agora tem a mim..."

Que bonito.

Confesso que invejei a ira do pai.

rapha. disse...

Não entendi por que ficou com inveja da ira do pai, amigo, mas obrigado pelo elogio e por ter lido.

Anônimo disse...

Rapha... que lindo e chocante ao mesmo tempo! E melhor, vc sentiu a dor de quem a sente sem nunca tê-la sentido.. faz sentido pra vc o que digo?rsrsrs.. pelo menos, não na carne, no físico, realmente, ou tem algo que eu não sabia?! rs... Parabéns pelo texto... Esperanza... todos temos uma! bjks
Tia Ana

rapha. disse...

Oi tia. obrigado pelas palavras.. e por ter lido principalmente.

Não, nunca passei por nada parecido, fique despreocupada, rs.
Na verdade, acho que a ideia da narrativa em primeira pessoa e da falta de detalhes do personagem principal é que acabe levando o leitor a um posicionamento de sentir realmente o que é sofrer por coisas que não são feitas para sofrer, ter sonhos destruídos por tão pouco, por ódio, por preconceito imbecil, por um pensamento retrógrado...

Mas ainda me falta um bocado de talento pra fazer um texto que leva a reflexões tão profundas.. rs

De qualquer forma, obrigado pela "visita". Amo você, cê sabe, né?