terça-feira, 25 de janeiro de 2011

fragmentos de um janeiro intenso.

Há o mar. Diante de todas as reviravoltas da vida e dos acontecimentos imprevisíveis dos últimos dias, paro e miro a imensidão salgada com meus olhos cansados. Por alguns instantes, não sei onde estou, não sei mais quem sou. Parece fazer muito tempo que a água transformou tudo que eu já conheci em lama e lembranças, mas sequer uma semana passou ainda. Tudo é recente, tudo ainda dói de forma tênue, quase imperceptível. Miro as águas de Niterói, mas minha mente lembra-se das águas que lavaram Friburgo e minhas raízes.
I
O despertador não havia tocado ainda. Por que minha mãe estava berrando à janela? Minha mente confusa pelo súbito despertar não assimila seus gritos. Penso em como seria bom não ter que ir para o trabalho naquela manhã, um desejo embaçado pelos lençóis do sono e consumado pela entrada repentina da minha irmã e meus sobrinhos a casa, relatando que “acabou tudo”.
Lembro-me que chovia quando fui dormir à noite anterior, chuva forte, torrencial, água violenta que não soube medir sua força. Não sabia a proporção da tragédia até ver barro, lama e sujeira por todas as esquinas do bairro. Não podia imaginar que aquela era diferente das outras enchentes que já haviam ocorrido até ver a rua em que brinquei, cresci e aprendi a ser quem sou hoje tornar-se uma cachoeira apocalíptica que levou carros, árvores e alagou a casa de um amigo de infância. Não poderia considerar que todo o país, naquele momento, estava conhecendo a minha simples e pacata cidade, meu refúgio no alto da montanha, porque estávamos completamente ilhados por barreiras gigantescas e não tínhamos telefone, celular, internet ou energia elétrica.
Afundei meus olhos em livros. Mantive minha mente afastada da realidade que me cercava. E agradeci quando o breu invadiu a casa e apaguei a lanterna para lançar-me novamente no mundo seguro dos sonhos.

II
Vencemos uma barreira enorme já trilhada pelos pés dos curiosos e necessitados que cruzaram-na antes de nós. Atolamos os pés na lama, no sentido mais literal e intenso possível. No trilho enlameado, a sensação era de patinar no barro escorregadio e fomos avisados que o corrimão e a parede estavam dando choque. Pareceria uma aventura cinematográfica se não fosse a vida real. Alcançamos a avenida e deparamo-nos com o caos — de uma forma que ia além da nossa imaginação ingênua de 48 horas ilhados no próprio bairro: lama, sirenes, ambulâncias, pessoas, tráfego, lama, gritos, vozes, helicópteros, polícia, mais lama, medo. O cérebro perdia a percepção da realidade. Não podia aquele ser o caminho que eu já havia feito bilhares de vezes, agora colorido com pinceladas de tragédia e tristeza.
Olhamos por alguns instantes os escombros do prédio que caíra, vimos a lama que tomou conta da Praça do Suspiro e, como algo já me dizia que ia acontecer, achei o Léo na rua e subimos para o Jambalaia. Um pequeno refúgio longe do terror que cobria as ruas de Friburgo.

III
Avisto um movimento estranho do basculante da área de serviço do Jambalaia. Pessoas correndo, ambulâncias, buzinas, carros e terror tentando alcançar o ponto mais alto do bairro. Vou ao quarto, falo com a serenidade que me é permitido: Tenta não entrar em pânico, Léo, mas acho que está acontecendo alguma coisa lá embaixo.
Descemos os 147 degraus do Jambalaia e descobrimos que uma represa rompeu e inundará todo o centro da cidade — eis o motivo de as pessoas estarem alcançando os pontos mais altos dos bairros. Há muito choro, pânico, terror psicológico, gritos, nervosismo e, logo em seguida, tudo é desmentido. Pasmem, sequer existe uma represa em Friburgo.
É a gota d’água. Decidimos nos refugiar por alguns dias em Niterói.

IV
“Já pode comprar a camiseta: Friburgo 2011 – Eu sobrevivi?” foi meu primeiro tweet depois de 48h desaparecido e de incontáveis replies preocupados e assustados. Havia gente tentando contato com a defesa civil de Friburgo, havia corrente de notícias e novidades, havia amigos relatando do choro, da preocupação, havia gente querendo dar tapas na minha cara... Havia, acima de tudo, sentimentos sinceros que eu não me esquecerei nunca.

V
Domingo à tarde, volta da praia. Eu estava estranhamente quieto. Natália comenta que estou feito mosca de padaria, só observando. Sorrio mas não consigo interagir com o pessoal. Não há tristeza propriamente dita, mas é uma reflexão quase que involuntária.
Telefone.
“Seu pai teve um infarto.”
Silêncio. Voz embargada. Passo o telefone pra Mari.
Choro. Choro incessante, lágrimas infinitas. Rivotril. Choro. 13h de sono.

VI
A serenidade da manhã e a descoberta de que já houve a transferência e ele encontra-se bem e consciente no Hospital Geral de Bonsucesso. Vamos visitá-lo e, enquanto chove o mundo no Rio de Janeiro, beijo-lhe a testa e embaço meus olhos de lágrimas. Fotografo-o com o celular e o Facebook contabiliza 14 (Y). Está tudo bem agora.
VII
Simplesmente para salientar: Itaipu/Bonsucesso sozinho é pra mim uma vitória pessoal contra meu medo de metrópoles.

VIII
Passagem à mão. Despedidas. Faltam palavras pra agradecer tudo que Tia Ana e Mari fizeram por mim na última semana. Sinto-me adotado, da família. Nunca esquecerei todo o afeto, paciência e solidariedade das Grillo Girls.
A serra, como sempre, perturba meu estômago. Há muitas estrelas no céu, mas não há ninguém nas ruas. É uma cidade-fantasma, um lugar esquecido com uma atmosfera anacrônica. Não é bom estar de volta... Não é.

IX
O calor e a poeira. Volta ao trabalho e um sentimento de não saber mais se pertenço a este lugar. É difícil respirar e não sei se o que me sufoca é a poeira ou a atenuada falta de perspectiva de uma cidade destruída.
*
Planos. Novos horizontes. E se fosse possível deixar tudo isso pra trás e recomeçar em outro lugar, uma nova vida, uma nova temporada, talvez com tudo aquilo que eu sempre sonhei e nunca consegui alcançar em Friburgo?
Penso no destino, embora não saiba se acredito nele ou não. Penso se as pessoas cruzam a vida das outras com um motivo predestinado. Penso se, quando conheci a Mari, há 3 anos atrás, já estava escrito em linhas invisíveis que ela seria de fundamental importância para eu aguentar toda essa barra de um janeiro doloroso e trágico.
É fim de temporada. Fim trágico e obscuro, mas que almeja uma nova temporada feliz e promissora.
Aguarde cenas dos próximos capítulos.

4 comentários:

Ana Cristina disse...

Rapha, sem palavras para descrever o que li... simplesmente lindo! Meus olhos marearam. Que sensibilidade. Quando crescer quero escrever como vc. Beijos de mammy postiça.

Lisys Darcy disse...

Adoro, sempre. Essa viagem te fez muito bem. Te dou a maior força pra mudar da cidade da nossa infância... bora pra outra cidade?

M. disse...

Você conseguiu marear os olhos de momi, mas os meus... Ah, eles ficaram bem vermelhos de tanto que chorei :P Porque sou manteiga derretida e vocês que escutam Justin Bieber? Não sei se nos tais 3 anos e algum tempo atrás um entrou pra vida do outro pra fazer alguma diferença, mas acredite, Raphinho, essa reaproximação veio pra isso. Não digo no sentido de você-precisava-passar-por-tudo-isso-pra-crescer-e-aprender, mas sim no sentido mais puro e simples: descobrir e enxergar as pessoas que realmente estão do nosso lado, as pessoas que querem ficar. Fico feliz de ter estado por perto quando você precisou, pra que você saiba que eu estarei em todas as outras vezes que forem necessárias. Vamos desejar que não sejam tão intensas e sofridas, né? Mas enfim... Nossa casa continua de portas abertas pra ti. E quem diria que um dia alguém que era vida imaginária se tornaria tão presente e essencial em vida real... Amo você, meu irmão mais velho *__*

nat. Marcolini disse...

uma descrição límpa, mas inundade de sentimentos! lindoo!
beijos