domingo, 15 de agosto de 2010

o marujo e o vaga-lume.


O barquinho cortava o negrume profundo com agilidade e astúcia. Não havia nada senão o escuro, um manto infinito que se estendia imponente diante de tudo que existia; não havia som senão a canção de ninar sussurrante do preguiçoso mar.

O marujo cochilava no fundo do barquinho, solitário, decidido. A escuridão era a única verdade que conhecia, o mar o único companheiro que já tivera. Seu coração era acostumado com a frieza da noite eterna e não lhe causava dor nunca ter visto nada com seus olhos cor-de-mistério.

Foi quando abriu os olhos e seu pequeno barquinho de madeira estava mergulhado em límpida fluorescência. O marujo soltou um urro assustado e tentou defender os olhos da luminosidade com o antebraço. Mas quando sua visão embaçada acostumou-se com a claridade, o marujo tomou ciência de tudo à sua volta. Banhado da luz esverdeada, curvou-se para fora do barco e viu seu rosto barbudo refletido na água negra, admirando-se com a plenitude de quem era.

O marujo não conteve a alegria que transbordava de seu peito. Dançou no pequenino convés do barco, à luz do vaga-lume, por horas e horas a fio. Considerou, no fundo do seu ser, o pequenino inseto como seu melhor amigo, a melhor coisa que já havia ocorrido na sua escura e taciturna existência pelo mar sem fim.

Mas os pés cansados, de súbito, pararam de se mover. A dança exuberante do marujo cessou abruptamente quando o pequenino ponto de luz moveu-se egoistamente em direção ao céu. Seus olhos marejados acompanharam a fluorescência esvanecer na única verdade que ele já conhecera: a noite.
De volta ao sufocante bréu, o marujo ensandeceu-se. Chorou copiosamente por horas, deitado na madeira fria do convés, sentindo o beijo misericordioso de uma brisa calma, que levava seu barco cada vez mais para dentro do oceano. Não é sadio acostumar-se com a luz quando somos fadados a viver no bréu, agora ele sabia. Decidiu que nunca mais seria capaz de viver no escuro e, numa medida desesperada, jogou-se no mar.

Ficou submerso por tempo suficiente para perder a consciência. Enquanto seu corpo forte enchia-se de água salgada, sua mente despertava para uma realidade iluminada, leitosa, límpida como uma manhã primaveril.

O marujo não havia mergulhado no mar. Havia mergulhado em si mesmo.

Retornou ao barco com dificuldade e, ao jogar-se no convés, contemplou a luz de um farol rasgando a noite, a quilômetros de distância. Inspirou uma grande quantidade de ar, revigorando seu corpo, abriu um tímido sorriso e soltou as velas do barquinho à ventura.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que bom que ele conseguiu imergir em si mesmo sem necessariamente aforgar-se.