domingo, 3 de julho de 2011

a última caminhada.

"A doce tarde morre. E tão mansa
Ela esmorece
Tão lentamente no céu de prece,
Que assim parece, toda repouso,
Como um suspiro, de extinto gozo
De uma forma profunda, longa esperança
Que, enfim cumprida, morre, descansa..."

(Felicidade, por Manuel Bandeira)

Arrastou-se para fora da cama com dificuldade proveniente do peso dos anos sobre suas costas. Os pés, descalços e frágeis, encostaram-se no chão de tacos iluminado pelo sol invernoso que adentrava pela janela, esparramando-se sobre os livros empilhados desorganizadamente. Moveu-se lenta e calmamente até a cômoda, na qual suas roupas provisoriamente mantinham-se guardadas desde que voltara à cidade, e vestiu sua camisa branca de seda favorita, abotoando-a distraidamente enquanto um assovio pacífico e melodioso era produzido pelos lábios ressecados. Passou com dificuldade as pernas fracas e magricelas para dentro de uma poída calça cáqui e a prendeu com suspensórios xadrez. Sentou-se na beira da cama, tateou o chão com as pequeninas mãos até encontrar o par de sapatos marrons, calçando-os. Arrastou-se de volta à cômoda, agachou-se com dificuldade e abriu a última gaveta, tirando dali um boné. Prostrou-se em frente ao espelho e, embora não se preocupasse mais com os cabelos desgrenhados ou com as marcas deixadas pela vida, escondeu os cabelos prateados com o boné, afundando as mãos nos bolsos da calça e se olhando no espelho por alguns segundos.


Batidas à porta e um rosto sorridente surge, surpreendendo-se com o que vê.

— Onde pensas que vai, tio? — a moça pergunta, adentrando o pequeno cômodo.

— Caminhar — responde com a voz pigarreada, ajeitando com a ponta dos dedos a branca barba que encobre o rosto macérrimo. — Vislumbraste o belo dia que faz lá fora? Entrou pela janela e me convidou a andar. Não pude recusar.

— E com que saúde pretendes sair por aí a passear? — a sobrinha era toda preocupação. — Já tomaste seus remédios? Temos que verificar sua pressão e...

— Deixe o velho em paz, mulher — o marido adentra o quarto, nas mãos uma caneca de café forte, que entrega ao senhor. — Que mal pode fazer uma caminhada nesse solzinho?

— Quer que eu te acompanhe, tio?

— Bah, não sejas boba. Sempre andei sozinho, seria um ultraje passar a andar com dama de companhia depois de velho — as mãos enrugadas levaram a caneca à boca, adoçando-a com o único vício que alimentara durante a vida toda. Bebericou com prazer todo o café e depositou a caneca vazia sobre a cômoda. — Já vou indo.

— Tome cuidado, tio, pelo amor de Deus.

Um sorriso doce coloriu o canto dos lábios. Beijou a sobrinha carinhosamente, pegou a bengala e partiu.

A tarde dominical queimava brandamente em luz invernal, pálido ouro, tênue calor. Os doces raios de sol acalentaram sua pele corroída pela erosão do tempo e se fez nostalgia, cercando-o por todos os lados. Apoiado na bengala, refez os passos do jovem frágil e desorientado, que não soube sonhar, nem obter todo o regozijo que a vida pode prover. Pisando sobre as próprias pegadas — que tentou por tantas vezes mostrar que eram decididas e obstinadas, quando não passavam de passos incertos e sem rumo —, era novamente o menino de boné, cujos olhos doces escondiam os receios espinhosos que lhe perturbavam. Como se fosse a vida eterno rodamoinho, estava de volta a andar nas ruas que impediram-lhe de sonhar, entre as construções medíocres que obstruíam sua visão para uma vida ampla e completa, entre as pessoas que emolduravam tão bem sua mente simplória e superficial. Podia ter sido tão mais, ele agora sabia. Agora, curvado e doente, apodrecido pelo efeito inexorável do passar dos anos.

Nem tudo era rancor, todavia, em seu coração enferrujado. Sabia que sua forma de sentir o mundo provinha, substancialmente, da sensibilidade gerada por aquelas longínquas caminhadas nas tardes solitárias de domingo. Tinha ciência de que, se agora podia emocionar-se ao olhar a forma como tudo é luz numa tarde invernal, devia tudo à forma como sozinho aprendera a ver a beleza na sutileza das coisas. E tudo era paz naquela tarde, quando a brisa balançou os galhos dos algodoeiros e, feito neve, pequenos tufos de algodão flutuaram no ar tenro, contrastando com o céu mais anilado de todos; tudo era paz quando as mãos cansadas acariciaram o focinho de um matreiro vira-lata que se engraçou para o velho e encurvado menino de boné, que sorriu como se ainda tivesse os dentes tortos e o sorriso infantil e ingênuo; era paz que assolava o coração quando meneava a cabeça para saudar os jovens cheios de vida que passavam por ele, mania local de uma falsa intimidade que lhe irritava quando jovem, mas que agora notara o quanto sentira falta no tempo que passara fora. Tudo, tudo era paz, enfim.

Avistou o banco à beira do rio, onde se sentava uma jovem e loira moça, de cabelos esvoaçando na brisa e de olhos azuis profundos na face alva e serena. Sentou-se ao lado dela, suspirando doidamente.

— Nunca me deixaste, não é mesmo? Mesmo depois de todos esses longos e demorados anos, ainda és a minha fiel companheira.

Olhava ao longe, ao horizonte pleno que desejava o sol ardentemente. As pálpebras finas e marcadas tremeram e os olhos castanhos, agora tão miúdos e sem vida, aguaram-se em oceano revoltoso e turbulento. Tirou o boné e depositou no banco, ao lado do corpo ínfimo, que recostou. Ela pôs a mão jovem e pálida sobre a dele, apertando docemente.

— Não chores, meu querido. Por favor, não chores.

— Lembro-me do quanto você era feia e assustadora num primeiro momento. Lembro do quanto a temia, de como queria que você fosse embora. — As lágrimas desbravavam a barba cerrada e caíam do queixo para o colo inerte, a voz era uma fininha estática quase inaudível. — E quanto mais desejava que fosses embora, mas vinhas à noite, e deitavas no meu travesseiro, abraçando-me, dizendo que nunca iria embora. Até que, por fim, meu coração acostumou-se, e te tornaste bela. Tornaste-te anjo que nunca me deixara andar sozinho, e veja aí o paradoxo. — Ele riu por entre as lágrimas copiosas, vendo a ironia de tudo aquilo. A mão dela ainda apoiada sobre a sua.

— Deixar-te-ei hoje, meu querido.

— Sim, eu sei. Choro não por tristeza, mas por tão linda a paz que me me serve de invólucro neste momento. O que teria sido de mim se não tivesse me acompanhado todo esse tempo?

Ela sorriu angelicalmente. Tomou-lhe a mão enrugada e beijou-a com os lábios levemente umedecidos. A brisa ainda bailava seus aloirados cachos quando ela se afastou a passos decididos, sem olhar por cima dos ombros.

O sol brilhava por entre as árvores, pássaros faziam voos acrobáticos no céu anil e o inverno chiava melodicamente no ventinho que soprava do oeste. Tudo, tudo era paz, enfim.