domingo, 26 de dezembro de 2010

1988.

Entro pela porta dos fundos. Sei que não sou bem-vindo e não gosto da prepotência que exigiria uma entrada pela porta da frente. Meus passos, como de costume, são sorrateiros e calmos, de uma serenidade adquirida com o passar de muitos anos. Alcanço a cozinha e encosto-me sobriamente no batente da porta. Trata-se de um simplório cômodo fracamente iluminado pela luz do fim do do dia. Sobre o fogão escarlate, uma panela inunda a cozinha num vapor aromático, onde ferve uma sopa de legumes e macarrão. As vidraças da janela-basculante embaçam-se na quentura da cozinha e a mãe repousa a colher com que mexia a refeição sobre a pia, virando-se pro pequeno garotinho aos seus pés. "A sopa já está quase pronta", ela diz num tom amável, ignorando minha presença. "Vou ali no quarto buscar um pano para tratar-te. Cuidado com o fogão que a sopa está fervendo."

A mãe atravessa o pequeno corredor e entra no quarto. Olho para o menino. Não gosto quando são crianças. É deveras doloroso para mim. Deve ter por volta de três anos, um pedacinho de vida que não ultrapassa os noventa centímetros, dono de dois olhinhos castanhos expressivos e curiosos. Me aproximo lentamente lançando-lhe o melhor sorriso que possuo, embora não exista qualquer vontade de rir em mim. Abaixo-me e deixo meus olhos azulados na altura dos dele. Minha voz é suave, na medida exata para não assustá-lo: "Hey rapaz. Você parece meio cansadinho. Tá cansado, é?" O molequinho meneia a cabeça, coçando o olho com a ponta do indicador. Num movimento rápido, alcanço a alça de ferro da tampa do forno. Temo que o barulho alerte sua mãe, mas ela não aparece. Sob o fogão, a sopa borbulha violentamente. "Pronto, sente-se aqui pra descansar um pouco", digo a ele, apontando para a tampa do forno aberta. Obediente, o menino se senta, absorto na ingenuidade inerente às crianças. Ajo rapidamente. Com frieza. Ponho-me de pé e meus dedos agarram o fogão, virando-o sobre o menino.

O protocolo é claro: não devo permanecer no local depois que acontece. Mas o abrupto estrondo do fogão chocando-se contra o chão, enquanto o líquido fervente escorria sobre os cabelos encaracolados do menino, trouxe sua mãe rapidamente à cozinha. Pude ouvir seu coração: era o som de cem tambores rufando em uníssono. Vi o pavor em seus olhos quando suas mãos trêmulas puxaram o garoto encharcado do chão e o seguraram contra seu peito. O garoto sufocava numa mistura mortal de dor e susto e aquele panorama me prendia ali, embora soubesse que já devia ter ido embora. Não havia mais ninguém em casa e, enquanto lágrimas desesperadas surgiam em seus olhos, a mãe correu em direção à rua, apertando o filho contra o peito como se, assim, retroagisse o tempo e evitasse o que acabara de acontecer.

É a minha maior fraqueza: a compaixão que habita meu coração e toma conta das minha atitudes de vez em quando. Sei que não posso ser submetido a ela. Sei que preciso ser forte nesses momentos e cumprir o papel que me é designado. Mas, às vezes, simplesmente não consigo. Segui a mãe e o garotinho de perto e os alcancei quando ela conseguiu uma carona para o hospital com um morador do bairro. Sentei-me ao lado deles, no banco de trás, o carro tomando a rua com velocidade e desespero. O menino começa a ganhar uma cor púrpura, a intumescência tomando conta de sua face tão frágil e ingênua. Segurei sua mãozinha banhada da sopa fervente, a pele em carne viva, e disse-lhe ao ouvido, calmamente: "Hey, Rapha. Fica calmo, tá bom? Vai ficar tudo bem."