(Caso não esteja chovendo quando estiver lendo este texto, clicar AQUI pode ser realmente útil. Assim como clicar no nome das músicas durante o texto pode tornar a experiência de lê-lo um tanto mais interessante. As imagens que ilustram este texto foram gentilmente roubadas do flickr. Os créditos para todas elas estão devidamente no final do post.)
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01. "Manhattan Skyline", Kings of Convenience
A janela salpicada de gotículas minúsculas embaçava a realidade exterior, ou assim lhe parecia, de pálpebras pesadas e pupilas desfocadas. Do terceiro andar, avistava abaixo um mar de sombrinhas multicoloridas, vermelhas-incandescente, azuis-turquesa, verdes-fluorescente, amarelas-pôr-do-sol, assim como guarda-chuvas sobriamente negros, que disputavam o espaço das calçadas, um borrão de cores sob a chuva forte, um encantado fluxo cromático camuflando as pessoas que se protegiam da água.
Ele tinha uma caneca à mão que exalava o cheiro doce de café por toda a extensão do quarto de hotel, mergulhado numa tênue penumbra acinzentada. Apoiando a testa na janela fria, triste, tristíssimo, bebericou o último gole do negro néctar. Vestiu um casaco sobre o suéter de lã, preparando-se para enfrentar o frio úmido de agosto. A chuva, lá fora, mantinha sua percussão ritmada nos telhados, sua música improvisada no vidro da janela, correndo pelas calhas e meio-fio, lavando a tarde plúmbea que morria lentamente. Ele, de mochila nas costas, passagem no bolso e guarda-chuva à mão, posicionou os fones do iPod no ouvido e, diante de um último olhar melancólico para o quarto, trancou a porta e ganhou o corredor.
02. "Furrows", I am Oak
Juntou-se à correnteza de guarda-chuvas e sombrinhas, um aglomerado heterogêneo de pessoas apressadas, irritadas, seus ternos impecáveis molhados pela chuva, os vestidos deixando à mostra canelas encharcadas. Os rostos, assombreados pela proteção à chuva, traziam nos traços uma melancolia pungente, olhos nebulosos que miravam as poças, acumuladas nas imperfeições das calçadas; lábios crispados em absoluto silêncio, como uma plateia extasiada que assiste ao concerto da chuva, batucando, delicada, nos guarda-chuvas. Ele tinha uma mão no bolso, passos incertos obstruídos pela multidão molhada, e teve dificuldade pra alcançar o ponto de ônibus.
Juntou-se à correnteza de guarda-chuvas e sombrinhas, um aglomerado heterogêneo de pessoas apressadas, irritadas, seus ternos impecáveis molhados pela chuva, os vestidos deixando à mostra canelas encharcadas. Os rostos, assombreados pela proteção à chuva, traziam nos traços uma melancolia pungente, olhos nebulosos que miravam as poças, acumuladas nas imperfeições das calçadas; lábios crispados em absoluto silêncio, como uma plateia extasiada que assiste ao concerto da chuva, batucando, delicada, nos guarda-chuvas. Ele tinha uma mão no bolso, passos incertos obstruídos pela multidão molhada, e teve dificuldade pra alcançar o ponto de ônibus.
Sob a proteção da marquise, cercado por propagandas luminosas e pessoas aborrecidas, fechou o guarda-chuva e aguardou. Os carros, na avenida, passavam, velozes, através das cortinas de chuva, deixando um rastro de frio que o fez puxar o zíper do casaco e esfregar as mãos com força, as bochechas, revestidas de barba espessa, avermelhando-se com a exposição ao vento invernal. O frio, todavia, não era só externo. Fazia frio também dentro dele, uma nevasca bruta que lhe cobria o coração naquela triste tarde chuvosa de agosto.
Uma vaga reminiscência surgiu em sua mente, de repente, despertada pelas gotinhas que acumulavam-se à borda da marquise e pingavam sincronizadamente. Era domingo à tarde, e estavam sentados num café, a algumas esquinas do ponto em que se encontrava agora, bem próximos, aquecendo-se mutuamente do frio. Ela adicionava umas gotinhas de adoçante à xícara de café e, na enevoada lembrança, no quebra-cabeça de imagens pouco nítidas, disse-lhe alguma irrelevância que configurou-se em sorriso. Um sorriso tímido, de lábios finos, de bochecha com covinhas, de beleza distinta, serena, de felicidade secreta, um sorriso que parecia preencher-lhe de contentamento. Foi quando descobriu que a amava, e se acometeu de um temor genuíno, que reluziu em seus olhos castanhos.
"Que tens, amado?", ela questionou, bebericando o café.
"Medo."
O microônibus estava vazio. No breve torpor do interior aquecido, pôde tirar o casaco, que colocou no assento ao lado, junto com a mochila xadrez. Fazia-se noite, lentamente, enquanto o ônibus cruzava a avenida movimentada; as luzes amareladas dos postes refletiam-se nas gotinhas de chuva acumuladas no vidro, criando uma constelação, um microcosmos que ele espreitava distraído. Pensava em sua casa, a algumas centenas de quilômetros de distância, no cheiro específico que ela tinha, na saudade de sua cama, seu travesseiro já adaptado à forma de sua cabeça. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, sentia vontade tremenda de ficar ali, tornar aquela cidade seu lar, pedir a ela um lugarzinho qualquer em seu apartamento no qual pudesse arrumar suas coisas e se aconchegar. Aquele sorriso... Podia acordar todo dia ao lado daquele sorriso, ele bem sabia.
Rain Bus Manchester Piccadilly |
Mas ambos eram estrelas, ele sabia, em cosmos distintos - embora a velocidade do ônibus fizesse as gotinhas correrem pelo vidro e se juntarem, como uma explosão cósmica milimétrica, um encontro inesperado dos astros que nunca deveriam ter suas rotas adjuntas. Eram estrelas. A se afastar, na velocidade da luz, para nunca mais avistarem o brilho uma da outra.
A rodoviária interestadual fervia em movimentação, uma ebulição de pessoas, malas e histórias, encontros e despedidas, sorrisos e lágrimas. Ele dirigiu-se à plataforma F2, na qual o ônibus que o levaria de volta à realidade, ao dia-a-dia, já encontrava-se parado e de portas abertas. No burburinho das pessoas excitadas, mesclado com o barulho da chuva batendo contra a lataria do ônibus, ele acendeu um cigarro, de coração apertado, como se estivesse prestes a deixar uma parte de si para trás ao entrar naquele ônibus.
Um senhor aproximou-se, pediu-lhe que acendesse seu cigarro.
- Tem os olhos tristes, meu rapaz.
- Estou deixando algo importante para trás - ele respondeu com displicência, soprando a fumaça pro ar.
O senhor meneou a cabeça, pesaroso, e foi fumar seu cigarro na outra ponta da plataforma. Ele apagou a ponta do cigarro com a sola do tênis e subiu no ônibus, procurando o assento identificado na passagem.
Poltrona 16. Ele riu da ironia.
- Estou deixando algo importante para trás - ele respondeu com displicência, soprando a fumaça pro ar.
O senhor meneou a cabeça, pesaroso, e foi fumar seu cigarro na outra ponta da plataforma. Ele apagou a ponta do cigarro com a sola do tênis e subiu no ônibus, procurando o assento identificado na passagem.
Poltrona 16. Ele riu da ironia.
06. "Summer Bird Diamond", Seabear
Há três dias atrás, sentado à décima-sexta poltrona daquele mesmo ônibus, ele chegava à cidade, meio que por aventura, para conhecer uma menina com quem havia trocado emails por vários meses seguidos. Não sabia o que esperar, afundado no assento com as mãos suadas de ansiedade, até o ônibus estacionar na plataforma.
Estava parada ali, a pele alva roseada pelo frio, os enormes olhos verdes apreensivos a perscrutar cada pessoas que descia do ônibus. Protegia-se da chuva com um guarda-chuva branco estampado com milhares de coraçõezinhos avermelhados, e ele simplesmente sabia que era ela. Foi em sua direção, mãos no bolso, tímido, e ela abriu o sorriso de covinhas, dizendo:
"Bem-vindo a Macondo."
Corria. As pernas a passos largos, como um atleta, a respiração descontrolada, apenas corria, sem se preocupar com os olhares curiosos que o observavam. Tinha dificuldade em abrir caminho através das pessoas, lentas, cheias de bolsas, atravancando o caminho, as calçadas, as esquinas. A chuva escorria por seu cabelo, molhava a roupa, não se importava, apenas corria, porque a cada passo sentia-a mais próxima e sabia que ela sorriria daquela forma e, de repente, ele se sentiria bem novamente. Achava que lágrimas escorriam de seus olhos, mas não tinha certeza, apenas corria, corria, até alcançar a porta e bater, com pressa, com ansiedade.
Street Light 3 |
08. "Cold Water", Damien Rice
Ela abriu a porta, vestida com roupas simples, os cabelos presos num rabo-de-cavalo. Espantou-se em encontrá-lo ali, ensopado da chuva, embora tivesse um guarda-chuva à mão. Ele agradeceu por ter chuva em seu rosto: ela não podia, dessa forma, ver as lágrimas em seus olhos.
- Tentei ir embora sem me despedir. Achei que seria mais fácil. Mas não consegui.
Covinha. Ela acariciou o rosto dele e deu-lhe espaço para que entrasse. Os dois, então, sumiram no calor do quarto.
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Playlist:
http://8tracks.com/rrrrapha/8-cancoes-para-dias-de-chuva
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Créditos de Imagens:
(juro que só roubei fotos de usuários que permitiam o download de suas fotos, rs)
"Monday After Rain", por sue tortoise
"Rain Buys Manchester Piccadilly", por Waka Jawaka
"Street Light 3", por Lisa Hindelang
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