quinta-feira, 2 de agosto de 2012

(projeto feat.) Daqueles Dias Cinzas.

Daí que acordei com vontade de contar uma história. Não que isso seja novidade, acontece corriqueiramente.

Mas, enquanto a história vinha surgindo em minha mente, eu pensava em todos os amigos talentosos que tenho e que, talvez, assim como eu, estejam com vontade de contar uma história também.

Pensei, acima de tudo, no quanto poderia ser bacana juntar ideias, gêneros, experiências e personalidades e como cada pessoa poderia mudar esta tal história que desejo contar e transformá-la em algo inimaginavelmente novo. Não vamos, entretanto, nos deter às palavras: qualquer contribuição pode ser bem vinda: um desenho, uma foto, uma música, um verso, qualquer coisa que possa colorir essa história de cores sutis e ímpares.

projeto feat. (feat. de featuring, abreviação usada quando um músico faz participação no trabalho de outro) começa aqui, com o meu pontapé inicial. A qualquer momento, você (sim, você mesmo) pode receber o convite para encarnar alguém nesta história  e mudá-la de forma única. 
Então, bora contar uma história? 
O projeto feat., por enquanto, está acontecendo apenas no facebook, na fan page do sob o boné. Em breve, é possível que ele ganhe um blog próprio ou um tumblr. Lembrando que, quem tiver com vontade de participar de alguma forma, entre em contato comigo para enriquecer essa experiência. 
Abaixo, apresentamos o primeiro episódio de Daqueles Dias Cinzas, primeira série de contos escrito dessa forma cooperativa. O segundo episódio já está sendo trabalhado com a ajuda da minha linda e querida amiga Lisys Darcy. Portanto, fiquem de olho que vem mais por aí.
________________________________________________________________________________


01. lar

"É incrível como sua vida inteira pode caber dentro de meia dúzia de caixas de papelão", era o que eu pensava, sentado ao meio-fio enquanto o brutamontes retirava tudo que eu tinha da traseira da caminhonete e empilhava com precisão de jogador de Tetris  na calçada. O suor salpicava sua testa, enfurnado numa calça jeans suja e regata branca encardida, no braço uma tatuagem com o nome das filhas, contara-me durante a viagem. Era um tipão caricato, eu analisava, tirando o maço de cigarros do bolso e prendendo um com os lábios, conchinha com a palma das mãos para previnir a chama do ventinho frio que virava a esquina e, enfim, o prazer esfumaçado descendo pela garganta. Pediu-me um cigarro, sentou-se ao meu lado limpando o suor da testa com as costas da mão, um suspiro cansado e um papo qualquer para preencher o silêncio:

- Frio aqui, não?

- Um pouco.

- Conhece alguém nessa cidade? - questionou displicente, a fumaça do cigarro permeando o bigode espesso e adentrando as narinas enormes. - Não que seja da minha conta, claro que não, mas uma cidade nova nunca é fácil, não é mesmo?

- Ficarei bem - tentei responder sem ser desagradável, terminando meu cigarro e levantando. - Podemos começar a levar as caixas para cima?

Era um quartinho no terceiro andar, cozinha americana, banheiro minúsculo, chuveiro que não esquenta. As caixas foram empilhadas num dos cantos, agradeci, paguei ao brutamontes, lá se foi fazendo o chão vibrar ao descer as escadas. Tranquei a porta - duas trancas, uma daquelas correntinhas de correr - e, por um momento, apenas suspirei. O dia já ia morrendo devagar, o céu caleidoscópico emoldurado pela janela aberta e o vento entrava e girava a poeira que se acumulava no chão de tacos arranhados.

De uma das caixas, tirei um micro-system desses portáteis 3 em 1, que liguei na tomada, e alguns cds, poucos, só trouxe o que achava realmente necessário. Elliott Smith, "Twilight",



 o violão misturando-se aos poucos com o som da rua, vozes, buzinas, berros, a cidade! Fervilha a cidade ao entardecer, ecoando nas paredes dos prédios, nos motores de ônibus, nas motos velozes a costurar o engarrafamento.

Outro cigarro. Apoio-me à janela, os raios moribundos de um sol convalescente brilham em meus olhos profundamente acastanhados, o fim do dia, a melancolia sufocante do crepúsculo alteando em meu peito. Estou sozinho. É tão profundo o reconhecer da solidão, mas não é de causar medo. Retiro de uma caixa uma caneta pilot, a parede infiltrada fingindo-se branca na mão de tinta dada às pressas, escrevo:

Hello darkness, my old friend
I've come to talk to you again.

Pego de surpresa no reflexo do vidro manchado da janela, ali está, Edgar, o rosto ossudo escondido em barba de pelos emaranhados, os olhos perdidos, os cabelos raspados, o corpo frágil, não de doença, de falta de comer, mas de tristeza, de sofrimento. Não é fácil de me reconhecer naquilo, nas manchas arroxeas sob os olhos, na pele marcada pelos ossos pontudos, qual foi o caminho que me levou ali? Àquela expressão taciturna e débil, desaparecendo aos poucos no morrer iminente do dia.

As estrelas começam a salpicar no manto negro da noite. O celular toca, com certeza minha mãe, preocupada se já fui sequestrado ou se já comecei um depósito de drogas ilícitas ou... Não, é ele. O nome estampado na tela iluminada, na foto, um sorriso tímido, calmo, de lábios macios e falsos. Trim, trim, o véu de fumaça, cinco pontas de cigarro no cinzeiro improvisado na latinha de cerveja, e eu, ali, de cueca, deitado no chão, disfarço as lágrimas, como se alguém me vigiasse de algum buraquinho discreto na parede, das janelas do prédio adjacente. Ninguém se importa, sou eu, somente eu e aquele quartinho fétido que agora precisaria, forçadamente, chamar de lar. Um lar de caixas empilhadas, de torneira pingando, de teto mofado e de barulho, de muito barulho, de toda a cidade se acomodando naqueles poucos metros quadrados.

Arrasto-me para o colchão puído no canto do quarto, posto no chão, sem cama, sem estrado. Um cansaço constante pesa sobre meus ombros e, de barriga para cima, vislumbro o teto, insone, apático. As luzes da cidade costumavam ser os olhos lacrimejasos da esperança. Não passam, agora, de observadoras entretidas de minha solidão. As horas arrastam-se, os olhos avermelham-se, Morfeus, onde estás? É insportável, os trovões de luz neon no teto, 1:43, 1:45, 1:46.

Visto-me. A cidade me chama.

Nenhum comentário: