(nota do autor: os fatos deste conto acontecem, cronologicamente, antes daqueles apresentados no conto anterior, O Ranzinza Urso-Cinza: Hibernação)
Cinzento não gostava de muita coisa, era bem sabido. Não gostava da calmaria matinal, dos primeiros raios de sol despertando-o tão cedo; tampouco gostava das tardes, dos ruídos estridentes da floresta em movimento frenético. Gostava – se assim podia-se dizer –, um tantinho de nada, das noites e da madrugada: hora em que todos estavam dormindo e não precisava preocupar-se em ser sociável, ou prestativo ou, pior ainda, amável. Não sabia ser amável, era essa a verdade. Se tentava sorrir, as mandíbulas abriam-se num emaranhado de dentes disformes e assustadores; se a tentativa era fazer carinho, as unhas grossas e pontudas, quase navalhas afiadas, acabavam por ferir a pele do pobre felizardo, cobaia dos experimentos sentimentais daquele ranzinza urso-cinza.
Cinzento não gostava de muita coisa, mas havia duas coisas de que gostava – e muito: de hibernar por todo o inverno; e de nadar no Grande Lago durante os dias quentes de verão.
Era apenas uma enorme bola de pelo boiando nas águas mansas, plácidas, sozinho e silenciosamente. Por ora, mergulhava lá no fundo e mantinha-se submerso pelo longo tempo que seus fortes pulmões permitiam. Podia ver todo o fundo do lago através das cortinas transparentes, reverberando vida aquática, os peixinhos a nadar em grandes cardumes iridescentes, as algas bailando para lá e para cá, incansáveis, como se o movimento da água fosse a melodia de um grande e improvisado balé.
Quando voltou à superfície, encharcado e contente, avistou um pontinho preto num dos altos galhos de bordo – e percebeu, instantaneamente, que seu agradável dia de natação estava prestes a ser arruinado. O mínimo pontinho abriu asas curtas de penas negras como a noite e, num voo rasante, chamou agourentamente:
- Cinzentu-uh-uh – e pousou num dos galhos mais baixos, bem próximo do urso.
Tratava-se da Coruja Corina, com seus olhos enormes e arregalados que vigiavam toda a floresta, com suas penas pretas que lhe davam um aspecto de luto contínuo, com seu bico ágil e sua vozinha esganiçada, sempre pronta para espalhar o último mexerico ou briga, separação e acontecimento entre os animais da floresta. Seu gosto pela fofoca era tão grande que, diferente de toda a sua família-coruja, que dormia durante o dia todo e mantinha-se acordada pela madrugada afora, Corina tinha hábitos extremamente opostos, com medo de perder qualquer burburinho. Acordava bem cedinho, logo quando os primeiros raios de sol vinham pintando o céu azul-cobalto, e só entrava para casa quando todos já se punham a dormir.
Cinzento bem que tentou mergulhar novamente para evitar a coruja, mas ela foi mais rápida e o berrou:
- Cinzentu-uh, meu caro amigo urso, você não vai acreditar no que aconteceu-uh-uh.
Cinzento resmungou alto, aborrecido, retirando-se do lago. Sacudiu o corpanzil com força para tirar o excesso de água acumulada em seu pelo e se pôs a andar pela floresta, ignorando a altiva ave. Ela sentiu-se muito afrontada com aquele dar de costas mal-educado e, planando baixinho logo atrás dele, vinha tagarelando ininterruptamente:
- Eu sei que você está chateado desde que noticiei jornalisticamente sua dieta à base de frutas vermelhas porque estava se achando gordo, Cinzentu-uuh – argumentou Corina, de ar sério -, mas aconteceu uma coisa incrível que você precisa ve--PARADO AÍ! – gritou, de repente, e seu berro agudo retumbou em toda a extensão da floresta.
- QUE FOI? – Cinzento bravejou, congelado, o coração palpitando com força.
Corina pousou em seu ombro, piscando os enormes olhos diversas vezes, um tique que irritava Cinzento deveras.
- Olhe na direção da clareira. O que vês, caro urso-balofo-uh-uh?
Cinzento apertou os olhos na direção indicada e descreveu prontamente, doido para se livrar da coruja:
- Nada demais, apenas o Danilo pendurado numa árvore pelud-- ÁRVORE PELUDA? – repetiu, sobressaltado. – Mas que diabos é aquilo?
Corina riu satisfeita, cheia de si com o espanto do urso. Cinzento se aproximou lentamente da cena estranha, percebendo que Danilo não estava sobre galhos amadeirados, mas sobre uma galhada bruta e ossuda; o tronco da árvore não era nada senão quatro pernas magricelas, com cascos afundados na terra, como se fizessem parte da paisagem; e notou também que os buracos na madeira não eram morada de pequenos roedores ou de passarinhos, mas sim duas grandes narinas que puxavam grande quantidade de ar.
- CINCENTO! – o esquilo Danilo gritou, demonstrando o alívio de ver o amigo urso ali. – Tragédia, Cincento! A fida nunca mais será a mesma: o Alce Alceu tá firando árfore!
E foi só quando se aproximou de vez que Cinzento pôde ver os dois olhos confusos e sutilmente estrábicos do alce a lhe encarar. Foi acometido de uma grande vontade de correr dali, para muito longe, onde tudo que existisse era neve e um cobertor. Mas era tarde: já estava preso na teia de presepadas dos seus amigos aloprados.
- Eu disse a ele que era urgente, mas ele não me acreditou-uh-uuh – Corina pontuou, com certo tom de desdém. – Ele me trata dessa forma porque noticiei jornalisticamente que ele é o terceiro pior urso-pescador do continente, só por isso-uhh.
- O que você tá fazendo aí parado, Alceu? – Cinzento questionou, ignorando a coruja (e controlando um demasiado forte impulso de torcer-lhe o pescocinho).
- Árvores ficam paradas – ele apurou, quase sem mover os lábios, como se fosse um ventríloquo profissional.
- Você não é uma árvore.
- Ele tem galhos, Cincento – contribuiu um Danilo extremamente excitado com toda aquela movimentação. – Que mais ele poderia ser com estes enormes galhos?
- Um alce – sintetizou, cínico, Cinzento. – Agora parem com isso e vão caçar o que fazer.
- Eu entrei em contato com as corujas-repórteres de outras florestas e constatei que este é o primeiro caso de um alce-árvore – Corina disse, voando na direção de Alceu, como se para analisar o caso mais de perto. – Vai ser um babado quando eu contar isso na convenção das corujas deste ano-uuh-uuh.
Os olhos de Cinzento estavam avermelhados – de ódio, de irritação ou dos dois. Respirou fundo, como se o oxigênio tivesse pequenas partículas de paciência extra para ajudá-lo a aturar aquela situação. Danilo rodopiava freneticamente em torno do corpanzil bruto do Alce, dizendo:
- Alceu, quando seus galhos já estiferem bem altos, posso fir morar neles? Imagina só a fisão panorâmica do lago que terá daqui!
- Contanto que você pague a taxa de condomínio – o alce negociou, de lábios estáticos.
- Vocês atingiram o ápice da loucura – Cincento bramiu, brabíssimo, pondo-se a andar para longe da clareira.
Danilo seguiu-o de perto, enroscando-se nas patas grossas de Cinzento e subindo até o seu ombro. Cochichou ao ouvido do amigo urso, num tom tão baixinho que não era de seu feitio:
- Cincento, focê sabe que dia é hoje?
- Não.
- Pois hoje é o dia que a bola de fogo chamuscante demora mais tempo para apagar.
- Humm – Cinzento sibilou, irritado, sem parar de andar.
- E focê sabe, Cincento, o que as inscrições sagradas da Alcateia Ancestral dicem sobre hoje?
- Não me diga que agora, além de tudo, também deu para esoterismo – Cinzento zombou, olhando o pequenino esquilo com o canto dos olhos.
- Cincento, é sério! – ele continuou aos sussurros. – Está lá, nas paredes da caferna:
“Eis que, ao maior de todos os solstícios,
A mais estranha das árvores florescerá
E nova será a vida por estes sítios
Quando, às cinzas, ela retornará.”
- Solstício? Que é isso? – perguntou Cinzento, incrédulo.
- Não faço ideia, mas os Lobos Anciãos sabiam o que diciam.
As bochechas de Cinzento se inflaram, feito balões de gás hélio, e, com um sopro forte e salivado, ele derrubou Danilo do seu ombro.
- Chega de maluquices por hoje. Tenho uma soneca para tirar – disse ele, sumindo, lentamente, na relva esverdeada.
*
Havia vezes que um bando de animais estranhos invadia a floresta. Vinham eles, vestidos com suas roupas engraçadas, em caixotes de ferro com rodas, e montavam tocas temporárias com agilidade e destreza; por que vinham, dependia do bando: alguns pareciam estar ali apenas por diversão, enquanto outros aparentavam vir para desafiar a paz, com suas garruchas carregadas e suas miras certeiras – ao que a população da floresta já sabia que precisaria passar uma temporada longe, escondida por outras bandas. Mas, todos os bandos daqueles estranhos animais bípedes tinham uma característica em comum: vinham para a floresta como se fossem donos do lugar.
E, quando iam embora, deixavam para trás toda a porcaria que consumiram jogada nos bosques, boiando no lago, poluindo a mata tão verde. Os bichos da floresta, então, se juntavam para remover todo aquele lixo de suas casas.
Num desses mutirões de limpeza, Danilo perguntou ao Mico Michelangelo se aqueles bichos eram parentes seus, devido a semelhanças em suas aparências, ao que Michelangelo foi muito enfático em dizer, aborrecido, que não tinha parentesco algum com bichos tão primitivos.
Na maioria das vezes, os bichos da floresta eram muito bem-sucedidos na limpeza de seu lar. Mas, próximo à clareira, uma latinha de cerveja vazia fora esquecida, aparentemente inofensiva.
Latinha essa que refletiu os raios de sol daquele dia quente de verão durante toda a tarde, em direção às folhas secas que se acumulavam num dos cantos da clareira.
Raios esses que, de tão quentes e fortes, aqueceram tanto as folhas ao ponto de fazê-las entrar em combustão.
Folhas essas que, em pouco tempo, iniciaram um enorme incêndio na floresta.
*
Cinzento estava estirado numa confortável moita, de patas arreganhadas, a barrigona voltada para o céu e a bocarra libertando um ronco alto que parecia um trovão. Ainda era dia, embora já fizesse horas que Cinzento encontrava-se em sono profundo, ao frescor duma sombra. O entardecer era de um rubor intenso, embaçado por uma fumaça espessa e salpicado de fuligem, uma paisagem dantesca de caos e calor.
Corina teve dificuldades para acordar o urso dorminhoco. Beliscou com o bico afiado a gordurinha sobressalente de sua barriga até que ele abriu os olhos, desnorteado, a perguntar:
- Onde é o churrasco?
- Não é churrasco, Cinzentuh-uh – ela corrigiu, voando nervosamente em torno da cabeça dele, aos berros. – INCÊNDIO NA CLAREIRA, precisamos de você.
Não foi preciso explicar duas vezes: no momento seguinte, Cinzento corria, nas quatro patas, pela trilha na floresta, a respiração ofegante pelo esforço de mover aquele corpo enorme com tanta agilidade. Só pensava em Alceu, parado na clareira, com aquela estúpida ideia de que se transformara em uma árvore. Corina voava ao lado dele, batendo as asas com força e narrando tudo que havia ocorrido até então. O calor vespertino foi ficando cada vez mais intenso, as cores da floresta expressivamente misturadas entre o verde-musgo e a vermelhidão flamejante, até que Cinzento alcançou a clareira, agora um verdadeiro caldeirão fervente, um vulcão em erupção no seio da floresta.
Toda a população da mata estava ali, em corrida ao Grande Lago, e trazendo, como podia, água para tentar apagar a gigantesca fogueira: Danilo enchia a boca com água mas, graças aos enormes dentões, não conseguia fechá-la e, consequentemente, a água escorria pelos lábios e sua contribuição como bombeiro era a própria saliva; uma passarada voava com pressa, organizada, cada uma das aves segurando a ponta de uma folha enorme, que mergulhavam no lago e, com dificuldade, levavam de volta até o incêndio, atingindo o fogo por cima; e os macacos, liderados pelo Mico Michelangelo, talharam horizontalmente pedaços de bambu e os utilizaram como baldes, numa engenhosa demonstração de trabalho.
Cinzento não perdeu tempo em juntar-se aos amigos para o difícil ofício de extinguir o fogo. Tentou olhar por entre as chamas crepitantes, avistar algum sinal de Alceu, mas as cortinas de fogo eram altas e imponentes. Contudo, depois de muitas idas e vindas, do lago à clareira, com a bocarra cheia d’água, foram as esperanças de Cinzento que se extinguiram. Ele sentou-se à beira do lago, triste, sentindo-se muito culpado por não ter insistido para que Alceu deixasse aquela ideia maluca de lado. Os olhos aguados, tristonhos, miraram a profundidade serena do lago e, subitamente, avistaram galhos presos na margem posterior. Focou os olhos com destreza e afinco e percebeu que aqueles galhos tinham, entre eles, um par de olhos estrábicos que...
- Alceu? ALCEU, É VOCÊ?
- Glup Glup Glup...
- Eu não consigo entender-te se não colocar a boca para fora d’água, seu besta! – Cinzento foi tomado por um contentamento do tamanho de sua barriga. – O que você está fazendo aí, Alceu? Pensamos que já tivesse se transformado em cinzas!
O alce respondeu, com seus lábios ventríloquos:
- É que, como estava com dificuldade de criar raízes lá, pensei que eu pudesse ser, na verdade, uma planta aquática.
Cinzento sequer retorquiu; com a pata dianteira, tocou amavelmente a cabeça do amigo, feliz de vê-lo bem. Descobriu que podia, sim, ser amável e que, embora os amigos deixassem-no louco com suas maluquices, sua vida não teria graça alguma sem eles.
Foi quando, milagrosamente, uma chuva torrencial começou a cair sobre toda a floresta. O brabo fogo amansou-se diante do poder da água e, em poucos minutos, tudo o que restava na clareira era uma fumaça plúmbea que descoloria o céu de verão.
O dia longo, finalmente, terminava. Cinzento, cansado, disse:
- Vou avisar à Corina para noticiar jornalisticamente que você está bem, Alceu.
E surpreendeu-se ao ver que, na ponta da galhada do alce, uma pequena folhinha verdejante florescia timidamente.
- Que você está olhando, Cinzento? – Alceu perguntou, intrigado.
- Nada, amigo. Nada não.