Verão de 1957.
Acordara bem
cedo, quando os primeiros raios de sol entravam pelas frestas da janela e
coloriam o chão de tacos malcuidados, os passinhos desordenados cruzando a casa
silenciosa a caminho da sala de estar. Lá estava, no canto da sala, envolvida
pela penumbra, a pilha de presentes que, embora não passasse de três ou quatro
pacotes ornamentados com belos laços vermelhos e papel colorido, a seus
olhinhos ingênuos parecia uma montanha imponente de desejos embrulhados. Tomava
cada um por vez nas mãos miúdas, sentia o peso, chacoalhava-os no ar, mesurando
inconscientemente uma escala de importância para escolher qual abriria
primeiro. Era por essa hora que a mãe despertava, alertada pelos barulhos
ansiosos do menino e, ainda vestida na camisola de seda, abria as janelas e
beijava seu cocuruto amavelmente, desejando-lhe “feliz aniversário”. Mais
tarde, embora ainda não tivesse ciência à época, aquelas manhãs, envolto nos
braços maternos e ao som doce de sua voz, tornar-se-iam suas melhores e mais
agradáveis lembranças.
Ao
entardecer, sob o céu alaranjado de verão, o gramado do quintal, no alto de uma
privilegiada colina, fora preenchido por balões multicoloridos, e o canto das
andorinhas mixava-se com os berros estridentes das crianças, que corriam
despreocupadamente, em brincadeiras desorganizadas, em deliciosas travessuras,
com copos de plásticos cheios de refresco nas mãos e as bocas cheias de pipoca.
Ele, vestido em sua melhor camisa de linho, engomada impecavelmente e abotoada
até a gola, os sapatos engraxados com capricho, sorria satisfeito, com as mãos
enterradas no bolso da calça cáqui, parecendo um pequeno homenzinho de seis
anos. Interagia moderadamente com as crianças endiabradas, recusando com educação
os convites para os tantos piques, tentando evitar sujar a roupa nova e bonita,
numa atitude peculiar para sua pouca idade. Os convidados pareciam desapontados
por um instante que durava até alguma outra criança matreira encostar-lhe a mão
nas costas e passar o pique, saindo, em seguida correndo e rindo.
Afastou-se
deles, a certo momento, suas vozes agudas e desafinadas tornando-se sussurros
desimportantes, e apoiou-se na cerca de madeira tosca que circundava a casa. Foi
quando seus olhos perderam-se na grandiosidade dos campos verdejantes tocados delicadamente pelo tênue sol do fim do dia, seus
pequeninos pulmões encheram-se dum ar impregnado de epifania, e teve, pela
primeira vez na vida, consciência de que era alguém, de que seu corpo frágil
estava absorto de existência. Sentiu o peso do mundo comprimi-lo, aquela coisa
enorme e intocável, da qual fazia parte de certa forma, agora tinha certeza. Viu,
traçadas diante de seus olhos, as linhas irrevogáveis do destino, os traços
desordenados do tempo, a amplitude de sua história, a ser escrita num
caderno cujas páginas ainda encontravam-se em branco, a caneta suspensa, tomada
em punho pela ventura de tudo que estaria por vir.
Durou
pouco; num segundo depois, avistou a silhueta de sua mãe contra a forte luz
crepuscular, berrando seu nome, nas mãos um bolo cheio de glacê confeitado por
ela mesma, as crianças ansiosas em volta dela. Olhou uma última vez para os campos,
significativamente, e, a passos lentos, voltou para sua festa de aniversário.
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