The Country Schoolhouse, 1937
Maxfield Parrish
Dizia
ele, para quem quisesse escutar, sem medo de parecer louco, sonhador ou
utopista, que já havia habitado Pasárgada. Sim, Pasárgada, aquela do Bandeira.
Acrescentava, ainda, com a voz pomposa e os olhos expressivamente verdadeiros,
que haviam aqueles sido os melhores anos de sua vida. Alguns duvidavam, sorriam
zombeteiramente e deixavam-no falando sozinho; não se importava. Os que ficavam
para ouvi-lo, acreditando ou não, embarcavam junto com ele numa viagem às
lembranças nostálgicas de tempos idos.
Era
uma casa rústica, de formas grosseiras, a tinta branca descascada, o lodo e o
mofo decorando suas laterais oblíquas. O sol mal havia nascido, mas o menino já
se esparramava pelo amplo quintal, os pés descalços desbravando a terra, um
mundo de sonhos escondidos sob o boné. Seria apenas um quintal malcuidado para
um observador qualquer, com o matagal bruto rompendo pelas cercas de arame
farpado e o caminho de pedras rudes levando à varanda da frente, mas não para o
menino. Transformava o que via com seus olhinhos castanhos num mundo de cores
cálidas, num reino de castelos majestosos e florestas encantadas.
Descortinavam-se, lentamente, os encantos de sua Pasárgada.
Era
com destreza que se pendurava no pedregulho do fundo do quintal e
transformava-o numa suntuosa caravela, navegando pelo mar bravio até alcançar
inabitadas ilhas nunca dantes exploradas. O velho e infrutífero limoeiro
servia-lhe de cabana improvisada, afinal, precisava proteger-se das bestas
ferozes e famintas que rondavam a floresta — ou do bravejar trovejante de sua
mãe, quando aprontava alguma traquinagem que excedia os limites da paciência
dela. E quando sentia fome, embora a geladeira estivesse sã e salva na cozinha
da casa, embrenhava-se na mata no intuito de caçar, armado com gravetos que se
metamoforseavam nas armas de fogo necessárias para enfrentar os perigos da
natureza selvagem.
Havia
uma obra inacabada nos arredores do quintal, lívida, concreto batido e nada
mais. Era um segredo bem guardado pelo menino que, na verdade, ali era o
castelo do reino, onde sua amizade com o rei permitia que vagueasse pelos
salões ricamente iluminados e participasse dos mais bastos banquetes com a rica
nobreza.
Mas
se Pasárgada é fuga, é exílio da vida que não se pode ter, como ensinou o
mestre Bandeira, do que fugia um menino com toda a estrada da vida aberta
diante dos seus olhos? Do que se exilava em meio às fantasias de sua meninice,
por que abdicava veementemente da realidade e de suas experiências?
A
verdade é que, sob aquele boné, escondia-se um mundo de medos e temores, uma
absurda falta de coragem de enfrentar o que já sabia estar rigorosamente
escrito no livro da sua vida, com a caligrafia invejável do destino. E foi com
as mãos trêmulas e suando, as pernas bambas e o coração palpitando feito tambor
que, certa manhã, foi chamado pelo rei para uma reunião inadiável.
—
Não podes mais viver em Pasárgada, menino Raphael — disse-lhe o rei sem
rodeios, confortavelmente sentado em seu trono dourado. — Cresce cabelo em teu
rosto, tua voz soa feito viola desafinada, tua mente perde-se na confusão de
pensamentos outrora inexistentes.
—
Mas Sua Majestade...
—
Sem objeções, menino. Ande logo, ande. Pega tuas coisas e vai viver tua vida.
E
assim, de mala e mágoa, atravessou pela última vez o caminho de pedras e deixou
para trás o mundo de fantasias da sua infância. Hoje em dia, ele tenta se virar
com as obrigações de ser adulto, com o medo de nunca atingir as expectativas
que colocam sobre ele, com a iminência da infelicidade que se deita ao seu lado
todas as noites. Ainda sabe perfeitamente o caminho, sequer precisaria de
bússola ou mapa para chegar lá. Mas, se tentasse voltar, os guardas ao portão
maciço nunca permitiriam que ele entrasse. Não tinha mais o que era necessário para
viver em sua Pasárgada:
a inocência a brilhar nos olhos.
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* Esse texto foi escrito atendendo às
exigências de composição textual da faculdade no período passado, pelas quais
fomos abastecidos com vários textos sobre o poema de Manuel Bandeira e, em
seguida, precisaríamos criar o nosso, descrevendo a nossa própria Pasárgada. Contudo,
pelo seu caráter bem pessoal — ou pela minha momentânea preguiça de escrever
algo novo, fica ao critério de vocês —, achei pertinente postá-lo aqui no blog.
2 comentários:
ADOREIIIIII!!!!!!!
Adoro quando mistura-se textos já conhecidos com novas leituras. Sejam poemas, frases ou contos.
Fiz isso numa aula de português, quando ainda adolescente, num poema de Cassiano Ricardo. Muito legal.bjs
intertextualidade é uma forma muito interessante de praticar a escrita.. Ainda mais por nos deixar em contato mais próximo com os textos dos autores que admiramos..
Quem sabe você me mostra essa experiência que vc teve depois? rs
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