sábado, 26 de maio de 2012

O Ranzinza Urso-Cinza - Hibernação

Havia algo no ar daquela manhã. Quando Cinzento acordou e se espreguiçou, suas patas enormes esticadas em direção ao céu muito azul, um ventinho insistente atingiu-lhe a nuca, fazendo os espessos pelos acinzentados do seu corpo bolachudo arrepiarem. Sonolento, dirigiu-se lentamente ao grande lago para beber água, e logo percebeu que havia algo diferente ali também: uma bruma fininha esticava-se por toda a extensão das águas cristalinas, feito um lençol fantasmagórico bailando sobre o lago. Cinzento franziu o cenho, acometido de indagações várias, e seus olhos caramelos perscrutaram os bordos que cercavam o lago, maravilhados. Já era tempo.

Serpenteando serelepe entre os galhos duma das grandes árvores, os pezinhos ágeis como os de Hermes, a cauda felpuda flamulando na brisa matinal, o esquilo Danilo aproximou-se, seus olhos esbugalhados e curiosos esforçando-se para compreender o que deixara Cinzento ali, estático, à beira do lago.

Cincento! — chamou o roedor do alto de um dos galhos, parando repentinamente. Por causa dos dentões, que sequer cabiam-lhe na boca, tinha uma forma jocosa e um tanto úmida de falar, sua vozinha fina e desafinada. — Cincento, amigo, fala comigo! Que focê tem? Sente-se mal? Quer que eu te lefe para caça? Focê sabe que... 

— Shhh — o urso silenciou-o, os olhos ainda voltados para os bordos. 

— ... e, embora focê esteja deferas gordo, focê sabe, amigo, eu sou forte, não preciça se preocupar, eu te carrego, apenas diga o que está acontecen-...

— Quieto, Danilo! —urrou Cinzento, diante da tagarelice. — Quieto, aí vem ele. 






Assobiando baixinho à distância, avançando invisivelmente veloz pelos vales, balançando as árvores e fazendo-as bailar com elegância e sincronia, o vento vindo do sul espalhou-se por toda a floresta. Sua melodia serena podia ser ouvida quando ele passou sorrateiro por Cinzento e Danilo de encontro aos bordos, acariciando seus galhos mais altos e surrupiando suas folhas douradas. Plainaram no céu azul, as folhas muito amareladas e secas, num turbilhão áureo e confuso que acabou por amarelejar todo o grande lago. 

— Santa Afelã Madura, a chufa de folhas douradas! — exclamou o esquilo Danilo, estupefato, os olhos vidrados do alto do galho no grande borrão amarelo em que havia se tornado o lago. 

— Exatamente, meu caro amigo dentuço. E tu sabes o que isso significa, não sabe? — perguntou Cinzento, com certa excitação na voz grave. 

O roedor espiralou em torno do tronco do bordo e aterrissou no ombro do amigo. 

— Por fafor, Cincento, meu coraçãossinho não fai suportar oufir-te dicer que... 

— Então um infarto o aguarda, roedor-de-nozes, pois ouça com todas as letras: hibernação, aí vou eu! 

Danilo, shakespereanamente, levou a mão ao minúsculo peito peludo, um Hamlet de trinta centímetros numa encenação ao ar livre. Cinzento deu as costas, embora ainda pudesse ouvir as lamentações teatrais do amigo: 

— Como podes ficar contente neste triste período do ano? Quando só nos feremos nofamente na primafera, Cincento? Seis messes, Cincento, seis messes — as pálpebras palpitando, os olhos aguados. 

— É isso que me deixa feliz, oras. Seis meses longe da sua tagarelice, das presepadas do Alce Alceu, das bisbilhotices da Coruja Corina... 

— Mas amamos focê, Cincento — uma pontinha de desespero podia ser notada na quantidade de saliva que umedecia suas palavras. 

— Adeus, Danilo. Vemo-nos na primavera. 

E o pequeno esquilo ficou ali, acenando com os dedinhos curtos, desolado. 

Cinzento gastou o resto daquela manhã fria pescando à beira de uma corredeira que desembocava no grande lago. Sua agilidade para pescaria nunca fora das melhores: posicionava o corpo robusto numa pedra e, de olhos atentos, esperava os peixes se aproximarem para agarrá-los com suas garras afiadas. Quando havia pescado o que achava suficiente, amarrou-os em forma de cacho com um cipó e pendurou sobre os ombros, uma quantidade de dar inveja aos outros animais que também faziam sua cota de mantimentos para o rígido inverno. Juntou aos peixes um favo de mel e algumas frutinhas colhidas e sentiu-se preparado para a maratona de sono profundo que estava por vir. 

Mantinha, no alto de uma montanha, a caverna na qual tinha o hábito de hibernar. Era uma subida lenta e demorada, acentuada por obstáculos como pedras e troncos de enormes árvores, mas Cinzento subia de bom grado, sabendo da recompensa que lhe aguardava lá no cume: a paz da inexistência de contato social pelos próximos muitos meses. 

Quando alcançou o topo da montanha, depois de horas de caminhada esforçada, o sol já sumia lentamente no horizonte, tingindo o céu dum tom alaranjado que se refletia sobre toda a floresta. Cinzento apreciou a vista por um instante, enquanto tomava grandes quantidades de ar que faziam suas narinas vibrarem, o peito forte inflando e desinflando em ritmo frenético. Pôs-se, em seguida, em direção à caverna, notando de imediato que a pedra oval — que usava para tapar a entrada do seu recanto de inverno quando não se encontrava lá — estava ligeiramente movida para o lado. Intrigou-se por um mísero instante, mas o cansaço era grande demais e, terminando de rolar a pedra, adentrou a caverna. 

Aparentemente, tudo se encontrava como havia deixado à primavera passada, quando o desabrochar das flores e o cessar do frio intenso anunciaram o fim do período de reclusão. Cinzento depositou toda a comida num dos cantos da caverna. Dominado por uma sonolência incontrolável, aconchegou-se à pedra que lhe servia de cama, tapando o corpanzil com um cobertor amarelo puído que, certa vez, um grupo de humanos que acampara na floresta havia deixado para trás. Era bem verdade que o manto mal lhe cobria as pernas, mas não se importava com isso; dado alguns minutos, o urso-cinza dormia profundamente. 

Já era madrugada quando ouviu pela primeira vez aquele barulho, um ronronar forte e contínuo que o despertou dos sonhos com campos gramados e céus azuis. Coçou a orelha peluda com as garras, num bocejo eloquente, e, atordoado, pôs-se de pé a procurar de onde vinha aquele ronco. A caverna estava precariamente iluminada pelo brilho prateado da lua, que invadia o recinto por um buraco no teto, e, com dificuldade para atravessar o estreito corredor que levava à caverna adjacente – seu bumbum avantajado quase o deixou preso no meio das pedras pontudas –, foi ouvindo o ronco cada vez mais forte e próximo. Um tênue fio de medo bambeou seus passos pesados, as pernas tremeram, e, quando o ronco tornou-se ensurdecedor... 

— Ei, o que pensas que estás fazendo na minha caverna? 

O ronco cessou de súbito, ela acordou assustada, levantando-se e apoiando na parede da caverna . Era uma ursa-parda jovem e elegante, com um grande laço amarelo no topo da cabeça, de olhos cor-de-avelã, arregalados pelo susto, e de pelo sedoso e brilhante à luz serena da lua. 

— Que isso? Já chegou a primavera? Por que parece que eu acabei de começar a hibernar? 

— Não, não chegou a primavera – bramiu Cinzento, irado. – Apenas quero saber o que a senhorita está fazendo na minha caverna, roncando feito um búfalo. 

— Sua caverna? – os sentidos voltavam aos poucos ao passo que a delicada ursa recuperava as lembranças dos últimos acontecimentos. – Mas quando cheguei aqui não havia ninguém. 

— Não interessa. Havia uma pedra obstruindo a entrada. Isto é invasão de propriedade privada. 

— Ei, ei, abaixa a sua bola, esquentadinho. – Ela sentou-se novamente, o laço a oscilar diante do ventinho frio que entrava pelas frestas da caverna. – Vamos recomeçar, está bem? Chamo-me Eduarda e parece que serei sua companheira de caverna durante essa temporada. Que tal? 





Cinzento parecia não acreditar no imbróglio que se sucedia. Colocou as mãos na cintura, a carranca demonstrando a ira que se apoderava lentamente dele. 

— Meu nome é Cinzento e EU NÃO COMPARTILHO MINHA CAVERNA! Anda, pega tuas coisas e vá procurar sua própria caverna. 

Eduarda sorriu, zombeteira, como se as ordens do urso-cinza que acabara de conhecer fossem as coisas mais estapafúrdias que já havia ouvido. 

— Olha aqui, fofinho – e quando digo fofinho, sabe a quê estou me referindo, não é? – acrescentou ela, fazendo com as patas uma forma circular no ar —, está frio lá fora, meu organismo está lento por causa da hibernação e estamos no topo de uma montanha. Quais são as chances que você vê de, no meio da madrugada, eu sair para procurar outro lugar para hibernar? – Cinzento abriu as mandíbulas irritadas, pronto para fazer suas objeções. Contudo, ela foi mais rápida: — Não sei o motivo de tanta rabugice, mas acho sensato você voltar para a sua caverna, como um bom ursinho, e começar sua hibernação. Estamos perdendo tempo precioso!

Eduarda encolheu-se no chão, as patas muito felpudas servindo-lhe de travesseiro, e cerrou os olhos. Ainda soltou um “Boa noite” quando, contrariado, resmungando palavras indignadas, Cinzento retornou para sua caverna — não antes de, novamente, quase ficar preso pelo traseiro no corredor estreito.




Alguns dias depois, registrou-se a primeira nevasca do ano. As temperaturas despencaram vigorosamente e a neve que agora cobria o cume da montanha transformou a caverna numa pequena amostra da Antártida. 

Cinzento foi subitamente tirado de sua hibernação por uma cutucada insistente no seu ombro esquerdo. “Pare com isso, Danilo, sai do meu ombro!”, ele murmurou em meio ao sono, mas, ao despertar, encontrou dois olhos com cílios avantajados a sondá-lo. 

— O que queres? – ele balbuciou com os cantos do lábio, escondendo a cabeça sobre as patas brutas. 

— A minha caverna está geladíssima, a neve está entrando pelas frestas na pedra. 

— E o que tenho com isso? Deixa-me dormir, ursa. 

— Só queria avisá-lo que ficarei aqui, com você, por medida de emergência. 

— O quê? 

Aquela não era a hibernação com que Cinzento havia sonhado. A ursa-parda havia trazido sua pouca reserva de comida e colocado junto com os alimentos dele e já se acomodava no canto posterior para voltar a hibernar. Percebera, entretanto, que arguir contra era perda de tempo. Eduarda era decidida e não se acovardava diante das caretas ranhetas que ele fazia como costumavam os animais da floresta. E, além disso, que mal havia, afinal, em um pouco de companhia, de compartilhar um pouco de oxigênio e espaço da sua caverna? Talvez estivesse sendo um pouco exagerado na sua vontade pungente de ficar só. Decidiu que não se importaria mais. Apenas voltaria a hibernar, como se estivesse realmente sozinho. 

Durante a noite, a tempestade de neve tornou-se ainda mais forte. Era possível ouvir, do interior pedroso da caverna, o vento assobiar alto, não mais a canção serena que causou a chuva de folhas douradas, mas um grito potente e alvo de neve e gelo. Cinzento ouviu um tilintar de dentes angustiado e seus olhos depararam-se, com dificuldade, na escuridão da caverna, com Eduarda contorcendo-se de frio, tremendo das orelhas à pontinha do rabo em forma de pompom. Ele estava quente e confortável, e certa complacência apoderou-se de suas atitudes, outrora egoístas e individualistas. Tomou a cobertinha amarelada, cobriu o corpo de Eduarda e deitou-se ao seu lado, passando seus braços fortes em torno do corpo dela. A ursa-parda abriu os olhinhos cansados, a temperatura do seu corpo elevando-se. 

— Ei, Senhor Rabugento, o que pensa que está fazendo? 

Cinzento sorriu, o hálito dela bem pertinho de suas narinas. 

— Evitando que vires picolé, Senhorita Irritante. 

Eduarda ajeitou a cabeça no colo de Cinzento e, por um mísero segundo, seus narizes encostaram-se, o que fez o urso arregalar os olhos, o coração palpitando rápido, os sentidos aguçados, a respiração ofegante. O sol brilhou forte, iluminou toda a extensão da caverna, aqueceu seus corpos e derreteu toda a neve. Margaridas desabrocharam em torno deles, violetas, tulipas e crisântemos, uma explosão multicolor, uma mistura intensa de perfumes. 

O frio estava extinto, a hibernação adiada; não houve inverno aquele ano. Pelo menos não na caverna de Cinzento. 




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Toda a arte desta postagem foi feita pelo meu amigo Vitor Martins. Você pode ver mais das suas ilustrações incríveis no seu flickr. e no blog mars' medicine.


Muito obrigado pela colaboração, amigo.

terça-feira, 27 de março de 2012

Meninos ao Entardecer


 Era de um vermelho intenso o céu naquele fim de tarde vernal, assim como o era o rubor das papoulas, das quais os meninos desviavam-se com seus pés encardidos e ligeiros, numa corrida ininterrupta. Desceram a colina com o capim a lhes roçar as canelas magricelas, o calor atenuado a lhes enrubescer as faces: Vicente vinha à frente, os olhos matreiros a brilhar, a mão pressionada contra o cocuruto para evitar que o zéfiro constante surrupiasse seu chapéu de palha; Carlos esforçava-se para alcançá-lo, a respiração ofegante, os óculos a sambar debilmente sobre o nariz. As nuvens eram pouco mais que pinceladas de sutil carmim no céu flamejante, as montanhas uma rústica moldura para a travessura idílica dos meninos.
O zunido estridente e constante dos mosquitos misturava-se harmoniosamente com o som sereno do rio. Vicente foi o primeiro a chegar à sua margem.  Despiu-se, atravessou o pequeno e rústico cais de madeira bruta e jogou-se nas águas que, servindo de reflexo ao horizonte distante, encontravam-se tingidas do mesmo vermelho-forte. Carlos surgiu de entre o capim alto algum tempo depois, puxando grande quantidade de ar pela boca, com as mãos apoiadas aos joelhos. As vestes dos meninos se entrelaçaram no gramado enlameado. Carlos retirou os óculos e, com a visão terrivelmente embaçada, esforçou-se para guardá-los dentro do chapéu de Vicente.
— Entre logo, a água está boa! — encorajou o menino, de dentro do rio, diante da titubeação do amigo.
Os dois submergiram na vermelhidão plácida do riacho, movimentando os corpinhos ágeis, em sua ingênua nudez, com pueril astúcia e apostando corridas descompromissadas até a margem posterior. Enquanto nadava, Vicente enchia a boca com a água mansa do rio, até as bochechas inflarem-se como balões, e esguichava-a contra Carlos, quando ele encontrava-se distraidamente apreciando o céu. Costumavam divertir-se com tais traquinagens aquáticas. Mas não hoje. Carlos exprimiu um sorriso descolorido, tedioso, e pôs-se a nadar para o lado oposto.
— O que tens? — Vicente indagou, os pezinhos alcançando o fundo pedroso do rio com dificuldade. — Não queres brincar hoje?
Carlos também cessou o nado e, de pé, deu de ombros, com os olhos baixos.
— Sinto-me triste.
— Por que motivo?
— Por nenhum motivo.
Vicente alisou as águas rubras com as palmas das mãos. Um bando de andorinhas rasgava o céu com seu voo urgente, o canto uníssono prenunciando os últimos instantes do dia. As nuvens, agora alaranjadas, eram levadas pelo vento que movia com preguiça o capim, fazendo-o assobiar.
— Mas somos crianças — o menino constatou meio sem jeito, como quem percebe a iminência de ser deselegante ou indelicado. — És tão jovem para sentir o peso do mundo a ponto de transparecer nos olhos.
Carlos não ousou responder; tais questionamentos estavam além de sua capacidade de compreensão. Sabia apenas o que sentia, e o que sentia era uma profunda vontade de deitar naquele gramado malcuidado e ficar sozinho. Vicente aproximou-se a nado, as mãozinhas rebatendo a água até alcançar o amigo estático. Forçou-o a olhar em seus olhos, e disse num tom misericordioso que destoava da sua pouca idade e de sua esperada falta de sensibilidade com os sentimentos alheios:
— Cuidarei de ti, está bem?
— Que dizes, Vicente? — retrucou, tornando-se cabisbaixo novamente, os pelinhos ralos da nuca arrepiando-se ao contato do corpo molhado com o vento.
— Que cuidarei de ti — repetiu Vicente, colocando-lhe a mão sobre o ombro. — Afinal, tu me salvaste outrora, quando era eu quem estava triste.
Carlos franziu a testa, confuso.
— Eu te salvei? Não me lembro de tal proeza, Vicente. Deves ter sonhado.
O sol já havia se escondido por completo; o caleidoscópio de matizes espalhava-se feito tinta a óleo sobre todo o céu, escorrendo suas explosões de cores no reflexo do rio. Vicente abriu um satisfeito sorriso de dentes-de-leite, os olhinhos, também privilegiados pela forte luz crepuscular, reluzindo em direção ao amigo.
— Pouco antes de tu mudares para a vila, eu havia perdido um grande amigo que fora embora. Vivia eu muito triste por não ter ninguém para nadar comigo no fim de tarde, nenhuma companhia para caminhar ao meu lado para a escola pela manhã, nenhum parceiro para jogar pelota na pracinha. Daí tu chegaste, Carlos, e me salvaras de tanta solidão. E agora eu não vivo mais triste, não.
Carlos esboçou um sorriso tímido e os dois meninos apertaram as mãos.
— Não precisas fazer promessas, Vicente.
— Não é promessa — apressou-se em corrigi-lo —; promessas são feitas para ser quebradas. Falo-te de minha vontade de cuidar de ti, porque vontade é imune à força vã das palavras. Vontade vem daqui, ó — e o menino apontou, com o indicador miúdo, o lado esquerdo do peito.
Subitamente, um grito agudo ecoou sobre a natureza silenciosa, vindo de considerável distância.
— É minha mãe — Carlos reconheceu de imediato. — Preciso ir para casa.
— Vemo-nos amanhã?
Ele assentiu com a cabeça, vestindo as ceroulas, um sorriso calmo colorindo-lhe os lábios. O céu já começava a ser preenchido pelo negrume da noite, o coaxar dos sapos era entreouvido com o cantar dos grilos, e as primeiras estrelas pontilhavam o horizonte. Carlos terminou de vestir-se e desapareceu detrás da cortina de capim, a caminho de casa. Vicente, entretanto continuou ali mais algum tempo, nadando despreocupadamente. Àquela noite, não havia necessidade de aguardar a visita da solidão.

Boys on a River Bank, 1906

Paul Serusier

quinta-feira, 15 de março de 2012

Esperanza

Pow.

Ecoa, na rua vazia, silenciosa, o som oco. Custa-me entender o que se passa: é meu corpo jazido ali no chão, inerte? É meu coração que palpita vorazmente diante da dor que se alastra por toda a cabeça, diante do véu de inconsciência que sutilmente começa a cobrir meus olhos? É minha face, amedrontada, pega de surpresa, que despenca em direção ao chão frio, que se choca no concreto inexorável?

Não me recordo do que estava fazendo ali, àquela hora alta da noite, quando o latido constante dos cães insones era a única serenata para lua. Numa bruma densa, leitosa, identifico o rosto sorridente de Ezequiel, a mirar uma foto que eu havia tirado do bolso da camisa. Quando aquilo acontecera? Havia passado minutos ou dias desde que ele me apertou forte contra o peito, beijou-me os lábios e disse, com os olhos úmidos, a foto presa entre os dedos como um tesouro do qual não abriria mão:

- É nossa pequena garota, amor.

- Sim, sim, é ela. Desde que bati os olhos, entre todas aquelas crianças necessitadas e sofridas, não pude pensar em outra coisa. Ela me mirou com seus olhinhos de profundo negrume, duas jabuticabinhas reluzindo à luz, e perguntou se agora eu era o papai dela.

Quando aquilo acontecera? Tudo é tão branco e abstrato, feito um sonho. Minha cabeça está tão molhada. Deduzo uma chuva que não existe, um vazamento do teto, embora sobre mim só haja o céu estrelado. Há a lua, seu brilho roubado, sua luz gelada alumiando os caminhos tortuosos da madrugada. O vazamento não é do teto; a água que escorre pelos fios do meu cabelo sai da minha própria cabeça. O latido dos cães se torna mais alto, minhas pupilas se dilatam, vejo entre a neblina densa pés que me rodeiam.

- Ela tem o mais lindo dos nomes – sussurrei ao ouvido de Ezequiel, seus olhos frágeis ainda a admirar a pequena foto tirada às pressas.

- Qual é? – questionou-me com a voz urgente, emocionada.

- Esperanza. Parece que os pais eram bolivianos, chilenos ou coisa que o valha.

- Esperanza. – repetiu ele. – Esperanza. É realmente lindo.

Dei-lhe um beijo. Despedi-me. É tarde, ele me disse, fique, durma aqui, respondi-lhe que não podia, que tinha coisas a resolver e que amanhã bem cedo iríamos ver nossa Esperanza. Advertiu-me para tomar cuidado, beijou minha cabeça com zelo e deixou-me descer as escadas. Não era longe dali que me encontrava agora, deitado no chão, por cansaço ao que me parecia. Não sentia o resto do meu corpo, tudo era dormência, tudo era inexatidão, a não ser os pés que me rodeavam.

É forte, violento, inesperado. Sinto os dentes bambear na boca seca, a carne rasgar-se feito papel, os músculos enrijecerem contra a forte pancada. Ouço, no meio da conturbada dor, a voz dele, gritando, cuspindo fúria e indignação:

- Viado de merda! Viado de merda!

- Pai, por favor, não – pareço dizer, embora não sinta os lábios mexerem. – Por favor, pai, perdão.

- Não foi essa a educação que te dei – a cólera e a saliva umedecendo o bigode. As mãos brutas, grandes, começam a tirar o cinto da calça, o desespero se apodera de mim.

- Pai, não, pai, por favor, por fav--

Não é meu pai. Não. Papai está morto. Velei o corpo, segurei as mãos frias e desesperadas de minha mãe, à beira do caixão madrugada adentro. Não é papai, Deus o tenha. Não é.

Ele me segura pelos cabelos ensanguentados, aproxima minha face desfigurada da dele, cospe, estapeia-me. Olho-o nos olhos. São de um azul magnífico, profundo, oceânico. Mas estão tingidos com ódio. Emoldurados de ira doentia, apoderados de cólera. Olho, subitamente, com dificuldade, em volta. Não está sozinho. Pares de olhos azuis reluzem na noite profunda, feito faróis, revezando um pedaço de pau que lhes serve de arma. Há tanto ódio ali. É quase tateável, concreto, lívido. É com as mãos cheias de ódio que outro toma o bastão de madeira e parte em minha direção.

De repente, por entre as sombras confusas do beco, avisto minha mãe sentada numa cadeira da cozinha, os olhos bondosos postos sobre um rapazinho que se embrulha entre os braços dela.

- Mamãe, por favor, ajude-me – imploro, com o gosto de ferrugem alastrando-se em minha língua. – Sou eu, mãe. Seu garoto.

Ela não me ouve. O choro doloroso do menino em seus braços parece ser mais urgente. Ele molha a camisa dela com lágrimas ingênuas, puras. Ela lhe acarinha os cabelos, beija-lhe a testa, diz baixinho:

- Não fique com raiva do seu pai, meu querido. Já há ódio demais neste mundo, não precisas ser mais um a cultivá-lo.

- Ele nunca vai aceitar, mamãe – retruca o menino, perturbado.

- Dê um tempo a ele, tá bom?

- A senhora me aceita? – pergunta, assoando o nariz com as costas da mão, dono de uma  inocência que se refletia nos seus olhinhos avermelhados do choro.

- Não sejas bobo, meu amado – replicou a mãe, um sorriso descolorido na ponta dos lábios. - Não há o que aceitar. Eu apenas te amo, por completo, incluindo todas as coisas que és. Amo-te, meu pequeno. Nunca te esqueças.
Nunca esquecerei, mamãe.

Lentamente, deitado na rua de pedras, com os olhos voltados para o céu estrelado, começo a ficar imune ao ódio deles. Não podem mais me atingir, não importa seus bíceps avantajados, seus golpes treinados, suas pauladas furiosas. Não ouço mais as batidas maçantes contra a minha carne, só ouço a voz desafinada de uma menininha de marias-chiquinhas e olhos negros como jabuticabas:

- Você volta amanhã mesmo, não volta?

- Sim, Esperanza – garanto a ela, abaixando-me para olhá-la nos olhos. - Amanhã você conhecerá seu outro papai.

- Oba! – ela vibra, colocando os bracinhos magricelas para o alto. - E você promete que nunca mais me deixarão sozinha?

- Prometo sim, minha menina. Você agora tem a mim.

Uma lágrima embaça meus olhos já quase sem vida.

- Por favor, Olhos Azuis. – imploro com o resto de ar que há em meus pulmões. - Já chega. Tenho que buscar minha Esperanza amanhã cedinho. Por favor, já chega. Deixe-me ir agora.

Ele não parece me entender; a única coisa que seus olhos azuis compreendem é o ódio. Uma última paulada maldosa, desnecessária, indica que estão saciados e saem badernado pela noite, barulhentos, regozijados, deixando-me ali, deitado inerte entre sangue e sonhos.  Não sinto nada. Não há mais dor. Só penso no quão tarde já é, puxa! 

Fecho os olhos. Preciso dormir logo. Amanhã acordarei cedo para ir buscar minha menina, minha pequena Esperanza.

Tears of Rage
Paint and rust on metal



 

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

nostálgica pasárgada. *

The Country Schoolhouse, 1937
Maxfield Parrish

            Dizia ele, para quem quisesse escutar, sem medo de parecer louco, sonhador ou utopista, que já havia habitado Pasárgada. Sim, Pasárgada, aquela do Bandeira. Acrescentava, ainda, com a voz pomposa e os olhos expressivamente verdadeiros, que haviam aqueles sido os melhores anos de sua vida. Alguns duvidavam, sorriam zombeteiramente e deixavam-no falando sozinho; não se importava. Os que ficavam para ouvi-lo, acreditando ou não, embarcavam junto com ele numa viagem às lembranças nostálgicas de tempos idos.
            Era uma casa rústica, de formas grosseiras, a tinta branca descascada, o lodo e o mofo decorando suas laterais oblíquas. O sol mal havia nascido, mas o menino já se esparramava pelo amplo quintal, os pés descalços desbravando a terra, um mundo de sonhos escondidos sob o boné. Seria apenas um quintal malcuidado para um observador qualquer, com o matagal bruto rompendo pelas cercas de arame farpado e o caminho de pedras rudes levando à varanda da frente, mas não para o menino. Transformava o que via com seus olhinhos castanhos num mundo de cores cálidas, num reino de castelos majestosos e florestas encantadas. Descortinavam-se, lentamente, os encantos de sua Pasárgada.
            Era com destreza que se pendurava no pedregulho do fundo do quintal e transformava-o numa suntuosa caravela, navegando pelo mar bravio até alcançar inabitadas ilhas nunca dantes exploradas. O velho e infrutífero limoeiro servia-lhe de cabana improvisada, afinal, precisava proteger-se das bestas ferozes e famintas que rondavam a floresta — ou do bravejar trovejante de sua mãe, quando aprontava alguma traquinagem que excedia os limites da paciência dela. E quando sentia fome, embora a geladeira estivesse sã e salva na cozinha da casa, embrenhava-se na mata no intuito de caçar, armado com gravetos que se metamoforseavam nas armas de fogo necessárias para enfrentar os perigos da natureza selvagem.
            Havia uma obra inacabada nos arredores do quintal, lívida, concreto batido e nada mais. Era um segredo bem guardado pelo menino que, na verdade, ali era o castelo do reino, onde sua amizade com o rei permitia que vagueasse pelos salões ricamente iluminados e participasse dos mais bastos banquetes com a rica nobreza.
            Mas se Pasárgada é fuga, é exílio da vida que não se pode ter, como ensinou o mestre Bandeira, do que fugia um menino com toda a estrada da vida aberta diante dos seus olhos? Do que se exilava em meio às fantasias de sua meninice, por que abdicava veementemente da realidade e de suas experiências?
            A verdade é que, sob aquele boné, escondia-se um mundo de medos e temores, uma absurda falta de coragem de enfrentar o que já sabia estar rigorosamente escrito no livro da sua vida, com a caligrafia invejável do destino. E foi com as mãos trêmulas e suando, as pernas bambas e o coração palpitando feito tambor que, certa manhã, foi chamado pelo rei para uma reunião inadiável.
            — Não podes mais viver em Pasárgada, menino Raphael — disse-lhe o rei sem rodeios, confortavelmente sentado em seu trono dourado. — Cresce cabelo em teu rosto, tua voz soa feito viola desafinada, tua mente perde-se na confusão de pensamentos outrora inexistentes.
            — Mas Sua Majestade...
            — Sem objeções, menino. Ande logo, ande. Pega tuas coisas e vai viver tua vida.
            E assim, de mala e mágoa, atravessou pela última vez o caminho de pedras e deixou para trás o mundo de fantasias da sua infância. Hoje em dia, ele tenta se virar com as obrigações de ser adulto, com o medo de nunca atingir as expectativas que colocam sobre ele, com a iminência da infelicidade que se deita ao seu lado todas as noites. Ainda sabe perfeitamente o caminho, sequer precisaria de bússola ou mapa para chegar lá. Mas, se tentasse voltar, os guardas ao portão maciço nunca permitiriam que ele entrasse. Não tinha mais o que era necessário para viver em sua Pasárgada: a inocência a brilhar nos olhos.

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* Esse texto foi escrito atendendo às exigências de composição textual da faculdade no período passado, pelas quais fomos abastecidos com vários textos sobre o poema de Manuel Bandeira e, em seguida, precisaríamos criar o nosso, descrevendo a nossa própria Pasárgada. Contudo, pelo seu caráter bem pessoal — ou pela minha momentânea preguiça de escrever algo novo, fica ao critério de vocês —, achei pertinente postá-lo aqui no blog.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

epidemias. (ou pequena discussão desimportante sobre a felicidade)

— Vim assim que pude. Você me pareceu tão preocupado ao telefone.
— Desculpe tirá-lo assim do serviço, amigo, mas eu não sabia a quem mais recorrer.
— O que aconteceu? Fale-me logo antes que eu tenha um treco.
— É... é que... eu acho que estou feliz.
O: Fffe-feliz?
— É. Eu acho que sim...
— Mas... tem certeza, amigo? Felicidade? Tem certeza que não é asma? Reumatismo? Cólica? Como isso foi acontecer, meu Deus? Desde quando você está sentindo isso?
— Não sei bem ao certo. Lembro-me dum dia em que ele desceu do ônibus... Foi nosso primeiro encontro à luz do dia; só tínhamos nos visto à noite antes disso. E, subitamente, parei, extasiado, e disse “Você tem olhos bonitos.” Desde então, acho que os olhos dele me fazem feliz.
— Que horror, meu amigo. Feliz por causa duns olhos.
— É, eu sei.
— Você já contou para sua família?
— Não! Claro que não. Como posso chegar para minha mãe e dizer: “Oi mãe. Estou feliz, você acredita nisso? Sim, isso. Felicidade mesmo.” Ela me coloca pra fora de casa só com a roupa do corpo.
— Você precisa se tratar. Procurar um médico, ver uns filmes do Lars Von Trier, ouvir Antony and the Johnsons...
— Não adianta. Nada disso. Ontem à noite, fui para a cama com uns poemas do Bandeira. Daqueles que parecem navalha cortando a alma, sabe? Nada. Nem uma lagrimazinha nos cantos dos olhos, um suspiro pesaroso, uma melancolia pungente...
— Talvez seja... não, melhor não falar isso.
— Fale. A coisa não pode ficar melhor... pior... hum... mais grave do que já está.
— E se for felicidade crônica?
D: Não diz isso, por favor. O que aconteceu com aquela ideia de que a felicidade é efêmera, nunca dura, dissipa-se com a mesma facilidade que nos assola? Eu não quero viver assim. Não vou suportar o bom humor matinal, o sorriso no ônibus, o mundo com cores vivas e alegres. Quero o cinza do meu quarto, quero os passos taciturnos, o andar cabisbaixo... Já nem sei mais quem sou! Horror, fim dos tempos! Faça alguma coisa, cara!
— Olha... Eu não sei se vai ajudar muito, mas, certa vez, li num livro que no século XX houve uma epidemia de amor pelo mundo.
— Amor? Você quer dizer, amor, amor mesmo?
— Sim. As pessoas se amavam, dá pra acreditar nisso? Eu não consigo nem conceber a ideia de viver num mundo com amor, é surrealismo demais para minha cabeça.
— E o que aconteceu?
— Oras, as pessoas se curaram disso, obviamente. Por isso, fique tranquilo, meu chapa. Daqui a pouco essa coisa de felicidade passa.
— Assim espero, amigo. Assim espero.