segunda-feira, 9 de maio de 2011

espera.

Esperei.

Esperei como quem crê, como quem faz por merecer, como quem vive pela promessa de que um dia virá. Às vezes, esperei de forma branda, calma, serena; sem olhar para os lados, sem procurar cegamente por qualquer sinal. Outras horas, fui com sede, afoito por cessar a espera. Afoguei-me em tantas expectativas frustradas, em tantos mares tempestuosos de decepções, bebi toda a água salgada e dolorosa do fracasso.

Da espera, colori-te com as cores que me convinham. Sua imagem sem rosto e, ao mesmo tempo, com todas as faces que te dei, feito uma folha branca onde delineei os traços rígidos e rústicos do seu maxilar, os lampejos do lápis desenhando os pelos desgrenhados da sua barba, os rabiscos dando vida aos seus olhos escuros. Esperei, desde então, seu rosto, anonimamente tão íntimo meu, desconhecido, misterioso. Fiz da espera certa, quando seus métodos eram oblíquos e tortuosos, fiz de você meu único, embora você fosse qualquer um.

A espera, contudo, transformou-se em fardo pesado, coisa difícil de sustentar. Metamorfoseou-se em bigorna de desenho animado, amarrada na canela fina, sugando para um abismo sem fim. Buscava explicações para tanta espera e deparei-me com um espelho emoldurado em ouro, refletindo intimamente o ordinário e simplório eu. Vi a mediocridade brilhando à luz do sol outonal, ofuscando minhas pupilas cansadas e entendi: se sequer eu conseguia amar a coisa simplória em que se constituía meu eu, como podia pedir a outra pessoa que aceitasse tal infeliz tarefa?

Da espera, fez-se paz de, talvez, não ser apto e merecedor de receber tal sentimento. Afinal, por que seria o amor, coisa rara, pertinente a qualquer ser humano que encha os pulmões de ar? Não seria o amor precioso e dado como dádiva a poucos que, venturosos, deveriam sentir-se abençoados com a capacidade de amar e, principalmente, de receber amor?

Tenho esperado. Ora aparentemente em vão, ora com a ínfima esperança de ser um desses merecedores, ganhadores de loteria. Tenho esperado.

domingo, 3 de abril de 2011

1. david, the radio dept.




2:43. Choca-se com minha face pálida uma brisa outonal que tinge minhas bochechas de um tom rosado doentio. Faz frio na sacada encoberta do nosso apartamento e, movendo circularmente a taça onde ainda resta um tantinho do cabernet, contemplo a bebida trepidar graças aos arrepios cálidos que percorrem minha espinha e causam tremores em minhas mãos congeladas. Não tenho mais noção de há quanto tempo estou aqui, sentado nesta sacada imbecil, as pernas movendo-se feito pêndulos sobre a penumbra que embrulha a cidade. Ainda 2:43. O relógio não se move. Acho que estou levemente embriagado pelo vinho e olhar lá para baixo não parece uma boa ideia. Vertigens. Um movimento brusco do meu braço esquerdo e a garrafa de vinho quase vazia flutua como uma sacola plástica em direção à calçada deserta. Espatifa-se em bilhões de cacos, mancha a calçada com o sangue amargo que restava no fundo. Seus faróis abrem caminho no breu silencioso. Ele para o carro rente à calçada, desce e seus pés pisoteiam os estilhaços do que outrora fora inteiro. Sangram as solas do seu tênis, molham-se da tinta bebida. Ele inclina a cabeça e me vê. Pequeno desconcerto otimista meu, não pode ou não me quer ver há tempo. Sou um borrão desarranjado para ele, nada além disso.


Ele sobe as escadas e vem ao meu encontro na varanda. Em silêncio, apóia na sacada uma garrafa de vinho nova, lacrada. Seus braços envolvem-me na cintura com força, seu lábio flamejante incendeia meu pescoço e há um choque de temperaturas dentro do meu corpo.

— O que faz aí? — ele sussura no meu ouvido, seus dedos grossos tocando-me por baixo da camiseta. — Matar-se-ia de saudade de mim, é isso?

Apóio a taça na sacada, curvo um pouco a cabeça para trás, roço minha barba levemente na dele.

— Cheira a outros homens. Impregnado em você, feito lepra. Vá se lavar.

O sorriso é debochado, os dentes reluzem à lua. Unhas encravam-se em meu abdome, a língua desliza em minha pele macia, molham-na, cobrem-na da saliva imunda. Morde-me ferozmente os lábios, puxa-me da sacada e lança-me ao chão frio da varanda. Não posso despedaçar-me feito a garrafa. Não se quebra o que já está quebrado, destruído, em frangalhos. Lágrimas queimam minha pupila acastanhada, embaçam-me a visão como um pára-brisa à chuva torrencial de março. Lança o corpo sobre o meu, o peso de um caminhão a comprimir meu peito. O peso da culpa, da consternação, da passividade.

— Oh David, não vás olhar-me nos olhos?

— O que temos aqui? O que é isso que vivemos? Explica-me o porquê desta dependência que não me deixa cuspir-te na cara, como mereces.

Ele lambe o sangue que tinge gentilmente o corte em meu lábio feito por sua mordida. Fricciona os lábios como que me saboreando, a ferrugem a espalhar-se em seu paladar. Os enormes olhos amendoados sobre mim com a opacidade já inerente. Desabotoa a calça jeans e sorri voluptuosamente.

— Não se explica o amor, David. Não, não se explica.

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A claridade leitosa que explode pelo teto de vidro é um enorme lençol branco sobre nossos corpos nus e inertes. Movo imperceptivelmente a face em sua direção para poder apreciá-lo. Gosto quando dorme. Do seu peito inflando e desinflando e de ver a vida a entrar e sair por suas narinas. Agrada-me com infantilidade o movimento involuntário de suas pálpebras fechadas, que tremelicam como se fosse acordar, embora nunca acordasse. Ainda sonhava, coloria-se das cores pungentes dos sonhos que outrora me contava com sua narrativa impressionada e envolvente. Mas gosto ainda mais de vê-lo dormir porque, nestas horas, vejo o homem que amo. Apenas quando a ingenuidade pode voltar aos traços firmes do seu rosto, disfarçada de sono, quando abraçado ao travesseiro e vivendo num mundo particular, sei que não pode mentir para mim ou me machucar. Toco-lhe os cabelos negros, o peito intumescido, os lábios firmes e grossos e amo-lhe, oh deus, como lhe amo quando dorme. Choro de tanto amor por um homem que só existe dormindo. Fico, não me vou embora e deixo toda uma vida destruída pra trás pelo simples prazer de vê-lo a dormir. Durma, meu homem, durma que esta é a única hora em que ainda te reconheço.

Visto uma cueca e deslizo entre os lençóis brancos até a cozinha do loft para preparar o café. A luz transborda pelos poros da casa, tudo é alvo e embaçado, tudo é subjetivo e irreal. Ele parece-me lindo visto por entre os lençóis de luz. Alcanço a Nikon e guardo sua serenidade em pedaços de papel. Fotografo a paz sublinhada nos traços do rosto bruto, a masculinidade esculpida nos ombros, a imponência do posicionamento das pernas entreabertas ocupando quase toda a cama. Dilatam-se as pupilas e, após um instante de reconhecimento, sorri-me com a pureza que ainda traz do mundo particular dos sonhos.

— Não está a fotografar-me durante o sono novamente, está, príncipe?

E eu apenas sento-me em uma cadeira, com a câmera apoiada no colo, e sorrio-lhe de volta, com os olhos ensopados.

— Parece um anjo envolto de toda essa luz. Não quis desperdiçar tal fotogenia.

Sirvo duas xícaras de café e trago-lhe uma à cama. Seu corpo envolve-me e ele encosta sensivelmente a barba em minha nuca. As canecas esvoaçam o vapor da bebida quente, o aroma aglomera-se nos lençóis de luz e a manhã de domingo brilha em sua palidez onírica.

— Encontrei a resposta para as perguntas de ontem.

— Conte-me — disse ele, abraçando-me com carinho e bebericando o café.

— Gosto de te ver dormir, Michael.

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david
the radio dept.
download.

pequena dose de ficção.

Desde muito pequeno, existe dentro de mim um fracassado e medíocre literato aprisionado. Lembro-me de quando muito pequeno, ainda de chupeta na boca, desenhava reis e rainhas numa folha e narrava histórias para que minhas irmãs escrevessem para mim, criando pequenas fábulas que, infelizmente, perderam-se no tempo. Depois de alfabetizado, empenhei-me em escrever uma coleção de contos com temáticas variadas e os compartilhava com meus amigos de classe, que divertiam-se com as histórias de detetives, aventuras de cidades perdidas e contos de terror de zumbis e monstros.

Com um pouco mais de esforço, numa época de isolamento, os contos cresceram e tornaram-se romances e até mesmo uma novela. Escrevia para escapar de uma realidade que não queria enfrentar, escrevia por poder fazer daquelas páginas de papel meu próprio mundo.

Eis então que, depois de alguns anos, encontro-me novamente escrevendo ficção. Afinal, nos últimos três anos, excetuando as redações para a faculdade, minha produção textual baseou-se nos posts deste blog, que dizem respeito à minha vida e meus anseios.

O que seguirá pelas próximas semanas aqui no Sob o Boné é um despretensioso conto sobre duas pessoas que se amam e precisam descobrir por quê. Uma relação corrosiva, dolorosa, embalada por canções íntimas e passionais.

Aos que resolverem vir junto nesta experiência, peço um pouco de compreensão com os possíveis erros ortográficos, gramaticais, com a obviedade de certos pontos da trama e com o meu vocabulário escasso. Ficaria muito feliz com respostas, comentários, críticas, portanto, fiquem à vontade pra participar de tudo isso.

É isso. Boa leitura.

r.

segunda-feira, 21 de março de 2011

quando só resta dizer tchau.

“Volto quem sabe um dia
Porque os trilhos já tiraram do chão
Olho as tardes, vivo a vida
Nada é em vão.”

(Vanessa da Mata)




Sob Medida, Rua Portugal. É a milésima vez que nos sentamos ali pra tomar uma cerveja e conversar. Mas o clima dessa vez é diferente. Não há calma, risadas, olhares para as mesas ao lado, comentários, conversas filosóficas sobre nossas vidas patéticas e, ao mesmo tempo, tão únicas. Há olhos oceânicos e decisões que não podem ser adiadas. Há despedidas e, principalmente, há a sensação de pecar por amar demais.

Ironicamente, a vida te trouxe até a mim também numa mesa de bar, há remotos dois anos atrás. Estava, àquela época, aprendendo a lidar com a decisão de enfrentar o que eu era. Havia contado para algumas poucas pessoas e a liberdade que aflorava lentamente em mim ainda era contida, tímida, envergonhada. Faltava-me coragem, essa é a verdade. Ainda não era claro pra mim de que tal condição não afetava o que eu já fora e o que eu viria a ser.

E eis que tu entras em minha vida, chutando a porta da frente e colorindo as paredes acinzentadas com suas cores carnavalescas e alegres. Aceitou involuntariamente a missão de ser como um mestre pra mim, de me ensinar as peculiaridades desse novo caminho que eu viria a traçar. Foi paciente — na maioria das vezes—, foi sincero, foi cúmplice. Dividiu comigo os recônditos mais singulares da sua vida, os mais assustadores, os mais cheios de genuíno regozijo. Permitiu que eu também expusesse meus temores, minhas lembranças e todas as minhas vontades e desejos. Foram inúmeras conversas nas escadas do Jambalaia regadas a café, foram incontáveis experiências diárias compartilhadas com macarronas improvisadas. Foi solidário a ponto de deixar sua própria mãe também me chamar de filho, dividiu comigo seus amigos e aceitou todos os meus também. Adaptou-se como pôde ao meu gênio instável, enquanto também precisei aprender a conviver com sua personalidade forte.

Penso, depois de tudo isso, se as pessoas cruzam os caminhos uma das outras por puro acaso ou se cada encontro de trajetórias tem um intuito, um projeto. Porque sei agora que se não tivesse tido você, ainda seria um moleque inseguro, sem coragem de enfrentar novas experiências, sem a capacidade de acreditar que algo intrínseco a meu ser não precisa ser aceito por ninguém. Isso é o que sou. E foi você que me ensinou a aceitar isso.

Num mundo onde amor é raridade, espero que continuemos a pecar por amar demais. Isso prova que estamos vivos, que somos de verdade, que ainda somos parte de uma pequena parcela da raça humana apta a amar. Que cause despedidas, se esse for o preço a ser pago. Consequência que não pode retirar o valor de tudo que foi vivido antes.


Amo você, meu amigo, de coração.
Vamos devorar o mundo. Merecemos isso.

r.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

enquanto saram as cicatrizes.

É como andar sobre um corpo moribundo, ferido, machucado em sua carne frágil. A cada esquina empoeirada, em cada bairro brutalmente afetado, não há sequer um pedacinho de Nova Friburgo que não sangre ininterruptamente depois dos acontecimentos fatídicos de 12 de janeiro. Não há fuga. Não há oásis em meio ao deserto trágico das vidas engolidas pela lama, pelos escombros e pela força da água. E, embora as feridas continuem ali, abertas, à mostra nos barrancos, sangrando barrentas nas montanhas e pedras que circundam a cidade, as pessoas tentam como podem reaver uma atmosfera de naturalidade que não vai existir de forma genuína durante muito tempo.



Já fazia algum tempo que eu estava de mal com Friburgo. Destas brigas de casal que está junto há muito tempo e ainda se ama, mas a relação não dá mais certo. Talvez tenha sido apenas um jeito de colocar a culpa de tudo que acontecia (ou melhor, que não acontecia) na minha vida em algo além do meu poder. Um bode expiatório, uma desculpa pela falta de força de vontade de lutar pela minha felicidade. Não sei até que ponto eu estava certo de culpar a falta de oportunidades de uma cidade pequena pelas minhas amarguras pessoais, mas lembro-me de falar milhares de vezes que Friburgo não podia ficar pior do que era. Provações superiores mostraram que eu estava completamente equivocado.

Na semana que eu voltei de Niterói (veja os acontecimentos que antecedem essa volta aqui), faltou-me chão por muitos e muitos dias. Senti-me incapaz de suportar a realidade de viver numa cidade destruída, fui brevemente tomado por um sentimento depressivo que ziguezagueava entre a tristeza e a indiferença. Fui egoísta, pensei exclusivamente em mim e no quanto eu não queria presenciar nada daquilo. Mirabolei planos de fuga estapafúrdios, fui acometido de uma coragem selvagem que me impulsionou a finalmente realizar um sonho de anos: ir embora de Friburgo. Pensei em recomeçar a vida em Niterói, cidade pela qual acabei me apaixonando na minha curta estada — e onde agora tenho planos concretos de morar em breve. Pensei em largar tudo e aceitar o convite de fugir para o sul com certa pessoa. Mas quando a cabeça retomou seu pensamento equilibrado e coerente, a decisão de continuar em Friburgo foi tomada. E então veio a fase de acostumar-se com a ideia de que seriam mais dois anos lutando contra o sentimento de aprisionamento que esta cidade me causa.

Um dos motivos pelo qual não quero ir embora agora é a Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, instituição onde nessa semana comecei o 5º período de Letras. Aham, eu já sei que cursos de Letras tem em qualquer cidade e que eu poderia pedir transferência para eles, mas a paixão que tenho por aquela instituição, seu ambiente e seus professores vai além de um curso, de uma licenciatura. Sei que não me sentiria tão bem em qualquer outro lugar e só quem estuda lá sabe do que estou falando.

Também há todas as pessoas que amo reunidas aqui, amizades que vêm desde a infância, toda uma família, conhecidos, gente que já me acostumei a ver sempre e a conviver. Tais pessoas já têm ciência da minha ânsia por algo maior que uma cidade no alto da montanha. Já sabem que tenho planos maiores e que me sinto massacrado aqui pela falta de oportunidades que acredito — embora seja desmentido de vez em quando por pessoas de fora — estarem por aí, me aguardando. A coragem pra deixar tudo pra trás já existe e não haverá dor em lutar por um sonho. Haverá saudade, nostalgia, sentimentos que serão curados com visitas constantes, sem dúvida alguma.

Dizem que a reconstrução de Nova Friburgo durará por volta de 2 anos. Coincidentemente, 2 anos é o tempo que me falta para terminar os estudos. Estarei aqui, vendo a cidade cicatrizar aos poucos e voltar a ser o que sempre foi. Um alívio: poderei ir embora deixando pra trás o lugar que, como uma mãe, foi parte íntima e importante do processo de amadurecimento do ser humano que agora eu sou.