terça-feira, 27 de março de 2012

Meninos ao Entardecer


 Era de um vermelho intenso o céu naquele fim de tarde vernal, assim como o era o rubor das papoulas, das quais os meninos desviavam-se com seus pés encardidos e ligeiros, numa corrida ininterrupta. Desceram a colina com o capim a lhes roçar as canelas magricelas, o calor atenuado a lhes enrubescer as faces: Vicente vinha à frente, os olhos matreiros a brilhar, a mão pressionada contra o cocuruto para evitar que o zéfiro constante surrupiasse seu chapéu de palha; Carlos esforçava-se para alcançá-lo, a respiração ofegante, os óculos a sambar debilmente sobre o nariz. As nuvens eram pouco mais que pinceladas de sutil carmim no céu flamejante, as montanhas uma rústica moldura para a travessura idílica dos meninos.
O zunido estridente e constante dos mosquitos misturava-se harmoniosamente com o som sereno do rio. Vicente foi o primeiro a chegar à sua margem.  Despiu-se, atravessou o pequeno e rústico cais de madeira bruta e jogou-se nas águas que, servindo de reflexo ao horizonte distante, encontravam-se tingidas do mesmo vermelho-forte. Carlos surgiu de entre o capim alto algum tempo depois, puxando grande quantidade de ar pela boca, com as mãos apoiadas aos joelhos. As vestes dos meninos se entrelaçaram no gramado enlameado. Carlos retirou os óculos e, com a visão terrivelmente embaçada, esforçou-se para guardá-los dentro do chapéu de Vicente.
— Entre logo, a água está boa! — encorajou o menino, de dentro do rio, diante da titubeação do amigo.
Os dois submergiram na vermelhidão plácida do riacho, movimentando os corpinhos ágeis, em sua ingênua nudez, com pueril astúcia e apostando corridas descompromissadas até a margem posterior. Enquanto nadava, Vicente enchia a boca com a água mansa do rio, até as bochechas inflarem-se como balões, e esguichava-a contra Carlos, quando ele encontrava-se distraidamente apreciando o céu. Costumavam divertir-se com tais traquinagens aquáticas. Mas não hoje. Carlos exprimiu um sorriso descolorido, tedioso, e pôs-se a nadar para o lado oposto.
— O que tens? — Vicente indagou, os pezinhos alcançando o fundo pedroso do rio com dificuldade. — Não queres brincar hoje?
Carlos também cessou o nado e, de pé, deu de ombros, com os olhos baixos.
— Sinto-me triste.
— Por que motivo?
— Por nenhum motivo.
Vicente alisou as águas rubras com as palmas das mãos. Um bando de andorinhas rasgava o céu com seu voo urgente, o canto uníssono prenunciando os últimos instantes do dia. As nuvens, agora alaranjadas, eram levadas pelo vento que movia com preguiça o capim, fazendo-o assobiar.
— Mas somos crianças — o menino constatou meio sem jeito, como quem percebe a iminência de ser deselegante ou indelicado. — És tão jovem para sentir o peso do mundo a ponto de transparecer nos olhos.
Carlos não ousou responder; tais questionamentos estavam além de sua capacidade de compreensão. Sabia apenas o que sentia, e o que sentia era uma profunda vontade de deitar naquele gramado malcuidado e ficar sozinho. Vicente aproximou-se a nado, as mãozinhas rebatendo a água até alcançar o amigo estático. Forçou-o a olhar em seus olhos, e disse num tom misericordioso que destoava da sua pouca idade e de sua esperada falta de sensibilidade com os sentimentos alheios:
— Cuidarei de ti, está bem?
— Que dizes, Vicente? — retrucou, tornando-se cabisbaixo novamente, os pelinhos ralos da nuca arrepiando-se ao contato do corpo molhado com o vento.
— Que cuidarei de ti — repetiu Vicente, colocando-lhe a mão sobre o ombro. — Afinal, tu me salvaste outrora, quando era eu quem estava triste.
Carlos franziu a testa, confuso.
— Eu te salvei? Não me lembro de tal proeza, Vicente. Deves ter sonhado.
O sol já havia se escondido por completo; o caleidoscópio de matizes espalhava-se feito tinta a óleo sobre todo o céu, escorrendo suas explosões de cores no reflexo do rio. Vicente abriu um satisfeito sorriso de dentes-de-leite, os olhinhos, também privilegiados pela forte luz crepuscular, reluzindo em direção ao amigo.
— Pouco antes de tu mudares para a vila, eu havia perdido um grande amigo que fora embora. Vivia eu muito triste por não ter ninguém para nadar comigo no fim de tarde, nenhuma companhia para caminhar ao meu lado para a escola pela manhã, nenhum parceiro para jogar pelota na pracinha. Daí tu chegaste, Carlos, e me salvaras de tanta solidão. E agora eu não vivo mais triste, não.
Carlos esboçou um sorriso tímido e os dois meninos apertaram as mãos.
— Não precisas fazer promessas, Vicente.
— Não é promessa — apressou-se em corrigi-lo —; promessas são feitas para ser quebradas. Falo-te de minha vontade de cuidar de ti, porque vontade é imune à força vã das palavras. Vontade vem daqui, ó — e o menino apontou, com o indicador miúdo, o lado esquerdo do peito.
Subitamente, um grito agudo ecoou sobre a natureza silenciosa, vindo de considerável distância.
— É minha mãe — Carlos reconheceu de imediato. — Preciso ir para casa.
— Vemo-nos amanhã?
Ele assentiu com a cabeça, vestindo as ceroulas, um sorriso calmo colorindo-lhe os lábios. O céu já começava a ser preenchido pelo negrume da noite, o coaxar dos sapos era entreouvido com o cantar dos grilos, e as primeiras estrelas pontilhavam o horizonte. Carlos terminou de vestir-se e desapareceu detrás da cortina de capim, a caminho de casa. Vicente, entretanto continuou ali mais algum tempo, nadando despreocupadamente. Àquela noite, não havia necessidade de aguardar a visita da solidão.

Boys on a River Bank, 1906

Paul Serusier

quinta-feira, 15 de março de 2012

Esperanza

Pow.

Ecoa, na rua vazia, silenciosa, o som oco. Custa-me entender o que se passa: é meu corpo jazido ali no chão, inerte? É meu coração que palpita vorazmente diante da dor que se alastra por toda a cabeça, diante do véu de inconsciência que sutilmente começa a cobrir meus olhos? É minha face, amedrontada, pega de surpresa, que despenca em direção ao chão frio, que se choca no concreto inexorável?

Não me recordo do que estava fazendo ali, àquela hora alta da noite, quando o latido constante dos cães insones era a única serenata para lua. Numa bruma densa, leitosa, identifico o rosto sorridente de Ezequiel, a mirar uma foto que eu havia tirado do bolso da camisa. Quando aquilo acontecera? Havia passado minutos ou dias desde que ele me apertou forte contra o peito, beijou-me os lábios e disse, com os olhos úmidos, a foto presa entre os dedos como um tesouro do qual não abriria mão:

- É nossa pequena garota, amor.

- Sim, sim, é ela. Desde que bati os olhos, entre todas aquelas crianças necessitadas e sofridas, não pude pensar em outra coisa. Ela me mirou com seus olhinhos de profundo negrume, duas jabuticabinhas reluzindo à luz, e perguntou se agora eu era o papai dela.

Quando aquilo acontecera? Tudo é tão branco e abstrato, feito um sonho. Minha cabeça está tão molhada. Deduzo uma chuva que não existe, um vazamento do teto, embora sobre mim só haja o céu estrelado. Há a lua, seu brilho roubado, sua luz gelada alumiando os caminhos tortuosos da madrugada. O vazamento não é do teto; a água que escorre pelos fios do meu cabelo sai da minha própria cabeça. O latido dos cães se torna mais alto, minhas pupilas se dilatam, vejo entre a neblina densa pés que me rodeiam.

- Ela tem o mais lindo dos nomes – sussurrei ao ouvido de Ezequiel, seus olhos frágeis ainda a admirar a pequena foto tirada às pressas.

- Qual é? – questionou-me com a voz urgente, emocionada.

- Esperanza. Parece que os pais eram bolivianos, chilenos ou coisa que o valha.

- Esperanza. – repetiu ele. – Esperanza. É realmente lindo.

Dei-lhe um beijo. Despedi-me. É tarde, ele me disse, fique, durma aqui, respondi-lhe que não podia, que tinha coisas a resolver e que amanhã bem cedo iríamos ver nossa Esperanza. Advertiu-me para tomar cuidado, beijou minha cabeça com zelo e deixou-me descer as escadas. Não era longe dali que me encontrava agora, deitado no chão, por cansaço ao que me parecia. Não sentia o resto do meu corpo, tudo era dormência, tudo era inexatidão, a não ser os pés que me rodeavam.

É forte, violento, inesperado. Sinto os dentes bambear na boca seca, a carne rasgar-se feito papel, os músculos enrijecerem contra a forte pancada. Ouço, no meio da conturbada dor, a voz dele, gritando, cuspindo fúria e indignação:

- Viado de merda! Viado de merda!

- Pai, por favor, não – pareço dizer, embora não sinta os lábios mexerem. – Por favor, pai, perdão.

- Não foi essa a educação que te dei – a cólera e a saliva umedecendo o bigode. As mãos brutas, grandes, começam a tirar o cinto da calça, o desespero se apodera de mim.

- Pai, não, pai, por favor, por fav--

Não é meu pai. Não. Papai está morto. Velei o corpo, segurei as mãos frias e desesperadas de minha mãe, à beira do caixão madrugada adentro. Não é papai, Deus o tenha. Não é.

Ele me segura pelos cabelos ensanguentados, aproxima minha face desfigurada da dele, cospe, estapeia-me. Olho-o nos olhos. São de um azul magnífico, profundo, oceânico. Mas estão tingidos com ódio. Emoldurados de ira doentia, apoderados de cólera. Olho, subitamente, com dificuldade, em volta. Não está sozinho. Pares de olhos azuis reluzem na noite profunda, feito faróis, revezando um pedaço de pau que lhes serve de arma. Há tanto ódio ali. É quase tateável, concreto, lívido. É com as mãos cheias de ódio que outro toma o bastão de madeira e parte em minha direção.

De repente, por entre as sombras confusas do beco, avisto minha mãe sentada numa cadeira da cozinha, os olhos bondosos postos sobre um rapazinho que se embrulha entre os braços dela.

- Mamãe, por favor, ajude-me – imploro, com o gosto de ferrugem alastrando-se em minha língua. – Sou eu, mãe. Seu garoto.

Ela não me ouve. O choro doloroso do menino em seus braços parece ser mais urgente. Ele molha a camisa dela com lágrimas ingênuas, puras. Ela lhe acarinha os cabelos, beija-lhe a testa, diz baixinho:

- Não fique com raiva do seu pai, meu querido. Já há ódio demais neste mundo, não precisas ser mais um a cultivá-lo.

- Ele nunca vai aceitar, mamãe – retruca o menino, perturbado.

- Dê um tempo a ele, tá bom?

- A senhora me aceita? – pergunta, assoando o nariz com as costas da mão, dono de uma  inocência que se refletia nos seus olhinhos avermelhados do choro.

- Não sejas bobo, meu amado – replicou a mãe, um sorriso descolorido na ponta dos lábios. - Não há o que aceitar. Eu apenas te amo, por completo, incluindo todas as coisas que és. Amo-te, meu pequeno. Nunca te esqueças.
Nunca esquecerei, mamãe.

Lentamente, deitado na rua de pedras, com os olhos voltados para o céu estrelado, começo a ficar imune ao ódio deles. Não podem mais me atingir, não importa seus bíceps avantajados, seus golpes treinados, suas pauladas furiosas. Não ouço mais as batidas maçantes contra a minha carne, só ouço a voz desafinada de uma menininha de marias-chiquinhas e olhos negros como jabuticabas:

- Você volta amanhã mesmo, não volta?

- Sim, Esperanza – garanto a ela, abaixando-me para olhá-la nos olhos. - Amanhã você conhecerá seu outro papai.

- Oba! – ela vibra, colocando os bracinhos magricelas para o alto. - E você promete que nunca mais me deixarão sozinha?

- Prometo sim, minha menina. Você agora tem a mim.

Uma lágrima embaça meus olhos já quase sem vida.

- Por favor, Olhos Azuis. – imploro com o resto de ar que há em meus pulmões. - Já chega. Tenho que buscar minha Esperanza amanhã cedinho. Por favor, já chega. Deixe-me ir agora.

Ele não parece me entender; a única coisa que seus olhos azuis compreendem é o ódio. Uma última paulada maldosa, desnecessária, indica que estão saciados e saem badernado pela noite, barulhentos, regozijados, deixando-me ali, deitado inerte entre sangue e sonhos.  Não sinto nada. Não há mais dor. Só penso no quão tarde já é, puxa! 

Fecho os olhos. Preciso dormir logo. Amanhã acordarei cedo para ir buscar minha menina, minha pequena Esperanza.

Tears of Rage
Paint and rust on metal