Era
de um vermelho intenso o céu naquele fim de tarde vernal, assim como o era o
rubor das papoulas, das quais os meninos desviavam-se com seus pés encardidos e
ligeiros, numa corrida ininterrupta. Desceram a colina com o capim a lhes roçar
as canelas magricelas, o calor atenuado a lhes enrubescer as faces: Vicente
vinha à frente, os olhos matreiros a brilhar, a mão pressionada contra o
cocuruto para evitar que o zéfiro constante surrupiasse seu chapéu de palha;
Carlos esforçava-se para alcançá-lo, a respiração ofegante, os óculos a sambar
debilmente sobre o nariz. As nuvens eram pouco mais que pinceladas de sutil
carmim no céu flamejante, as montanhas uma rústica moldura para a travessura
idílica dos meninos.
O
zunido estridente e constante dos mosquitos misturava-se harmoniosamente com o
som sereno do rio. Vicente foi o primeiro a chegar à sua margem. Despiu-se, atravessou o pequeno e rústico
cais de madeira bruta e jogou-se nas águas que, servindo de reflexo ao horizonte
distante, encontravam-se tingidas do mesmo vermelho-forte. Carlos surgiu de
entre o capim alto algum tempo depois, puxando grande quantidade de ar pela
boca, com as mãos apoiadas aos joelhos. As vestes dos meninos se entrelaçaram
no gramado enlameado. Carlos retirou os óculos e, com a visão terrivelmente
embaçada, esforçou-se para guardá-los dentro do chapéu de Vicente.
—
Entre logo, a água está boa! — encorajou o menino, de dentro do rio, diante da
titubeação do amigo.
Os
dois submergiram na vermelhidão plácida do riacho, movimentando os corpinhos
ágeis, em sua ingênua nudez, com pueril astúcia e apostando corridas
descompromissadas até a margem posterior. Enquanto nadava, Vicente enchia a
boca com a água mansa do rio, até as bochechas inflarem-se como balões, e
esguichava-a contra Carlos, quando ele encontrava-se distraidamente apreciando
o céu. Costumavam divertir-se com tais traquinagens aquáticas. Mas não hoje.
Carlos exprimiu um sorriso descolorido, tedioso, e pôs-se a nadar para o lado
oposto.
— O
que tens? — Vicente indagou, os pezinhos alcançando o fundo pedroso do rio com
dificuldade. — Não queres brincar hoje?
Carlos
também cessou o nado e, de pé, deu de ombros, com os olhos baixos.
—
Sinto-me triste.
— Por
que motivo?
— Por
nenhum motivo.
Vicente
alisou as águas rubras com as palmas das mãos. Um bando de andorinhas rasgava o
céu com seu voo urgente, o canto uníssono prenunciando os últimos instantes do
dia. As nuvens, agora alaranjadas, eram levadas pelo vento que movia com
preguiça o capim, fazendo-o assobiar.
— Mas
somos crianças — o menino constatou meio sem jeito, como quem percebe a iminência
de ser deselegante ou indelicado. — És tão jovem para sentir o peso do mundo a
ponto de transparecer nos olhos.
Carlos
não ousou responder; tais questionamentos estavam além de sua capacidade de
compreensão. Sabia apenas o que sentia, e o que sentia era uma profunda vontade
de deitar naquele gramado malcuidado e ficar sozinho. Vicente aproximou-se a
nado, as mãozinhas rebatendo a água até alcançar o amigo estático. Forçou-o a
olhar em seus olhos, e disse num tom misericordioso que destoava da sua pouca
idade e de sua esperada falta de sensibilidade com os sentimentos alheios:
—
Cuidarei de ti, está bem?
— Que
dizes, Vicente? — retrucou, tornando-se cabisbaixo novamente, os pelinhos ralos
da nuca arrepiando-se ao contato do corpo molhado com o vento.
— Que
cuidarei de ti — repetiu Vicente, colocando-lhe a mão sobre o ombro. — Afinal,
tu me salvaste outrora, quando era eu quem estava triste.
Carlos
franziu a testa, confuso.
— Eu
te salvei? Não me lembro de tal proeza, Vicente. Deves ter sonhado.
O sol
já havia se escondido por completo; o caleidoscópio de matizes espalhava-se
feito tinta a óleo sobre todo o céu, escorrendo suas explosões de cores no
reflexo do rio. Vicente abriu um satisfeito sorriso de dentes-de-leite, os
olhinhos, também privilegiados pela forte luz crepuscular, reluzindo em direção
ao amigo.
—
Pouco antes de tu mudares para a vila, eu havia perdido um grande amigo que
fora embora. Vivia eu muito triste por não ter ninguém para nadar comigo no fim
de tarde, nenhuma companhia para caminhar ao meu lado para a escola pela manhã,
nenhum parceiro para jogar pelota na pracinha. Daí tu chegaste, Carlos, e me salvaras
de tanta solidão. E agora eu não vivo mais triste, não.
Carlos
esboçou um sorriso tímido e os dois meninos apertaram as mãos.
— Não
precisas fazer promessas, Vicente.
— Não
é promessa — apressou-se em corrigi-lo —; promessas são feitas para ser
quebradas. Falo-te de minha vontade de cuidar de ti, porque vontade é imune à
força vã das palavras. Vontade vem daqui, ó — e o menino apontou, com o
indicador miúdo, o lado esquerdo do peito.
Subitamente,
um grito agudo ecoou sobre a natureza silenciosa, vindo de considerável
distância.
— É
minha mãe — Carlos reconheceu de imediato. — Preciso ir para casa.
—
Vemo-nos amanhã?
Ele
assentiu com a cabeça, vestindo as ceroulas, um sorriso calmo colorindo-lhe os
lábios. O céu já começava a ser preenchido pelo negrume da noite, o coaxar dos
sapos era entreouvido com o cantar dos grilos, e as primeiras estrelas
pontilhavam o horizonte. Carlos terminou de vestir-se e desapareceu detrás da
cortina de capim, a caminho de casa. Vicente, entretanto continuou ali mais
algum tempo, nadando despreocupadamente. Àquela noite, não havia necessidade de
aguardar a visita da solidão.
Boys on a River Bank, 1906
Paul Serusier