quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O Ranzinza Urso-Cinza: O Natal da Família Urso [parte 2]



Pequenos vaga-lumes brilhavam sincronizadamente na caverna da família Urso, que, protegida do frio da nevasca que tomava conta da floresta, tinha um aroma suave de nozes e amêndoas. Num dos cantos, o Alce Alceu, estático e em silêncio absoluto, com uma suspeita galhada revestida de folhas de pinheiro, ganhava frutinhas de enfeite, penduradas meticulosamente  por Horácio e seus primos polares, Paolo e Poliana. Os olhinhos de Alceu se mexiam, seguindo o movimento dos filhotes, e refletindo as luzes de natal.

- Por que você usa esses óculos? - Paolo questionou, desedenhoso, pendurando algumas cerejas na árvore medonha que possuía olhos.

- Tenho alguns graus de miopia - o ursinho-de-óculos explicou enquanto rodopiava em torno de Alceu com cipós coloridos.

- Eles te deixam com uma cara de besta - Poliana riu-se, alisando os pelos alvos, entediada.

- Assim como esse comportamento infantil também os deixa - Horácio retrucou.

- Ei, não fale assim com a minha irmã!

- Deixa ele, Paolo. Daqui a pouco ele vai lá choramingar com aquele pai balofo dele.




E os dois ursinhos gargalharam, maldosos, se afastando. Cinzento, irritadíssimo, acompanhava as crianças com olhos atentos. Estava prestes a intervir: não deixaria ninguém tratar seu filho daquela forma. Paolo, entretanto, dissimulado como uma raposa, abraçou a idosíssima tia Apolinária - uma ursa polar tão velha que Horácio cogitou a hipótese de ela ser sobrevivente da Era Glacial - e disse, com uma vozinha meiga e falsa:

- Onde foi o vovô Apolo, tia Apolinária?

A velha mordeu a boca desdentada, acariciando o pelo sedoso do sobrinho.

- Ele saiu pra buscar uma surpresa para nosso natal, queridinho. Ah, e por falar em surpresa... - ela disse de repente, levantando-se com dificuldade e caminhando para alcançar sua bolsa - ... veja, Cinzento, trouxe presentes para você, Eduarda e Horácio.

Cinzento, rabugento, tomou o presente e, com as garras afiadas, rasgou o embrulho de folhas coloridas.

- Meias? - resmungou, revirando, incrédulo, os três pares de meias felpudas.

- Sim, não são lindas? - tia Apolinária parecia muito satisfeita. - Conheci um grupo de ovelhas tropicais que morriam de calor e, portanto, doaram sua lã para que eu tricotasse essas belezuras.

- Nós somos ursos! Não precisamos de meia, não sentimos frio, humpf.

- São lindas, tia Apolinária - era Eduarda, vindo com uma deliciosa torta de nozes às patas. - Anda, Cinzento, experimenta para ver se cabe - ela mandou, fazendo uma careta imponente.

- Mas Eduarda, um urso de meia? O que pode ser mais besta? - ainda tentou argumentar o urso-cinza, mas sabia que divergir da opinião da esposa não era a escolha mais adequada. Nunca.




Cinzento sentiu-se muito estúpido com as meias três-quartos de listras multicoloridas, e seu mau-humor ganhou um agravante significativo. Foi esconder-se no canto posterior, longe das luzes, como que humilhado por aquele presente, o que causou risadas jocosas dos ursinhos polares Paola e Poliana. Horácio acompanhava tudo com os olhos confusos: ainda não sabia ao certo o que era o natal ou por que Danilo estava tão excitado com a data.

Vovô Apolo, um urso-polar um tanto mais velho que tia Apolinária, mas, ao contrário dela, de corpo robusto e jovial, adentrou a caverna com uma surpresa barulhenta e inusitada às patas: numa rústica gaiola de galhos, trancafiado e aflito, um peru batucava contra a jaula, tentando se libertar.

- Vejam só, eu trouxe o jantar! - Vovô Apolo anunciou, levantando a gaiola, orgulhoso.

- Por favor, vocês não vão querer me comer - disse o peru com desespero, soltando penas de aflição. - Eu estou muito magro, acho que tenho anemia. Se quiserem, dou o endereço de uma prima minha, um tanto mais gordinha e...

- Vô, não comemos mais carne aqui - Cinzento explicou, chateado, do seu cantinho escuro.

- Como assim não comem carne? - Vovô Apolo parecia ter ouvido o maior dos absurdos.

O peru respirou aliviado.

- Uma dieta à base de verduras é muito mais saudável, garanto - disse ele, como que perito em nutricionismo.

- E como pode estar gordo assim comendo só mato? - Poliana pontuou, intrigada.

- Desde que Horácio nasceu - começou a explicar Cinzento, em meio ao falatório -, paramos de comer carne, porque ele ficava assustado com o canibalismo.

Todos os olhares viraram-se para Horácio, julgadores, decepcionados - com exceção de tia Apolinária, que cochilava a ponto de roncar. O ursinho, desconcertado, limpou uma lágrima que teimou correr por detrás dos óculos, e subiu as escadas encrustadas na pedra para uma caverna adjacente, que lhe servia de quarto. Eduarda seguiu-o e, acarinhando os pelos do topo da sua cabecinha, disse com a voz doce:

- O que foi, meu pequeno? Não gostou do natal?

- Não! - ele respondeu, em meio a um choro doído. - O natal é um saco, e o papai tá irritado e sendo ridicularizado por minha causa.

- Horácio, não seja bobo. Seu pai sempre está irritado e sendo ridicularizado. Isso não é culpa sua. - Eduarda deu um beijo na bochecha do filhote, amorosa, e disse: - Você ao menos já descobriu realmente o que é o natal?

- Ainda não - resmungou fungando.

- Então vai lá.

Horácio voltou às escadas e, de repente, como se tivesse uma visão, uma iluminação, parou, de olhos arregalados: os ursos estavam rodeando a mesa, compartilhando a torta de nozes feita por Eduarda, rindo e felizes. Até o peru tinha um lugarzinho à mesa e bicava sua fatia de torta, muito satisfeito.

Entre as luzes reluzentes dos vaga-lumes, Horácio finalmente entendeu o que era o natal: aquele laço invisível que unia as famílias em um abraço apertado, que, pelo menos por uma noite, apagava as diferenças e tornava a todos um pouquinho mais pacientes. Mais que isso, natal devia ser, Horácio ponderava, aquela paz mansinha que encontrava no amor de seus pais e na vontade impetuosa de demonstrar esse amor.

O pequeno urso-de-óculos aninhou-se no colo do papai Cinzento, com um sorriso inocente: descobrira, de repente, que amava o natal.


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AGRADECIMENTO: Daniel Thurler, por, mais uma vez, aturar os pedidos do namorado chato e preparar esses desenhos lindos do Cinzento e sua família. <3

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Ranzinza Urso-Cinza: O Natal da Família Urso [parte 1]


Quando finalmente descobriu o que era o Natal, Horácio, o urso-de-óculos, já tinha quase dois anos de idade e deixava, aos poucos, de ser uma bolinha de pelos acinzentados sedosos para tomar formas do urso robusto que seria um dia - se, ao acaso, a natureza o moldasse às formas de seu papai Cinzento. Uma brancura espessa tomava conta de toda a floresta e o pequeno urso, com os óculos de lentes enormes cambaleando na ponta do nariz, deixava as marcas dos pezinhos na fina camada de neve que se acumulava sobre a vegetação rasteira, cobrindo os galhos das árvores e granulando o grande lago de minúsculos pontinhos alvos. O sol, entretanto, ardia em incandescência no céu muito azul e perolava o dia com uma luz leitosa e branda, feito uma cortina de seda flamulando à brisa.

Horácio ajeitou os óculos e parou muito ereto diante de um enorme tronco de carvalho. Bateu três vezes na madeira com as patinhas felpudas e, após o som ecoar vibrante no tronco oco, um pequeno roedor de pelugem ruiva surgiu, ofegante, num dos galhos mais altos. Era o esquilo Danilo.

- Ah, olá, querido Horácio! - cumprimentou com sua vozinha agudíssima - Fenha, a porta está aberta - convidou o esquilo, sem atinar para a impossibilidade do atarracado urso alcançar, a próprio mérito, o cume íngreme do carvalho.

- Veja, Danilo, a neve já se acumula em espessura suficiente para que empreendamos uma guerra de bolinhas gélidas e mortais! - excitou-se o ursinho, juntando com as patas um pouco da neve que estava a seu alcance.




Danilo franziu o cenho, abobado. "Não entendo nada que esse menino diz" pensou,  diante da eloquência precoce de Horácio. " Fai fer ele tem algum probleminha..."

- Agora não posso, amigo - respondeu, enfim, para qualquer fosse a proposta do urso. - Estou arrumando as malas pra fiajar.

- E qual seria seu itinerário, caro amigo?

- QUÊ? - gritou, lá de cima, o esquilo.

- Para onde você vai? - Horácio rosnou mais alto, como se seu tom de voz fosse o real imbróglio para a falta de comunicação.

- Ah, eu e a Fanussa famos foar para o sul, para passar o natal com a família dela. Não é marafilhosso?

- Natal, o que é isso? - indagou o confuso Horácio. - E como pretendem realizar a incrível peripécia de voar até o sul se, não obstante, não possuem asas?

- Adeus, Horácio. Mando-te um postal do sul - e o esquilo sumiu no interior do tronco de carvalho.

Não saber o que era o natal perturbou o esperto urso durante toda a manhã. Atravessando a fina camada de gelo e o tênue frio que lhe arrepiava os pelos escuros e espessos, dirigiu-se ao bosque das nogueiras, onde seus pais colhiam as nozes que os alimentariam durante o período de hibernação.

- Papai Cinzento, tenho uma indagação deveras pertinente para lhe fazer.

Eduarda riu, continuando a colher as nozes maduras, enquanto Cinzento girou os olhos para o límpido céu azul, enfastiado - era um tanto difícil ter um filhote dotado de demasiada perspicácia. Largou as nozes e, embora na maioria das vezes não soubesse responder às questões existenciais de Horácio, sentou-se para ouvi-lo.

- O que é natal, Papai Cinzento? - perguntou, como se saboreasse as letras daquela palavra que ainda não lhe representava nada.

Cinzento rangeu os dentes, para deleite ainda maior de Eduarda.

- Eu vou MATAR o Danilo!

Os olhinhos caramelados de Horácio apertaram-se por detrás dos óculos.

- Desculpe-me, papai, mas natal é alguma obscenidade?

- Claro que não, filhote - Eduarda aproximou-se, às gargalhadas. - Não comemoramos o natal porque o preguiçoso do seu "papai Cizento" - (e houve aqui um certo quê de sarcasmo) - não é capaz de abrir mão de um diazinho sequer de hibernação.

- Talvez a obesidade acentuada do papai explique essa fadiga constante - o urso-de-óculos ponderou com inocência. - Será que não poderíamos, papai, ao menos uma vez, comemorar o natal?

- NÃO! - Cizento urrou entredentes, como se somente a ideia do natal lhe causasse dor física.

Foi quando ouviu-se um ensurdecedor estrondo vindo de longe, como se o enfático "não" de Cinzento tivesse força suficiente para causar uma avalanche. O barulho de gelo chocando-se com a margem do Grande Lago, entretanto, não configurava mistério algum para os ursos adultos, que trocaram olhares de confidência. Cinzento, desconcertado e movendo-se depressa na direção das extensões do lago, seguido de perto por Eduarda e Horácio, exclamou, incrédulo:

- Gêlobus!

Os olhos arregalados de Horácio surpreenderam-se ao ver uma gigantesca pedra de gelo atracada à beira do grande lago, em cuja superfície dezenas de ursos branquíssimos, quase camuflados em contraste com o iceberg, despediam-se de quatro deles, que desembarcavam de malas às mãos.

- Vovô Apolo! - Eduarda gritou com euforia, correndo para saudar os recém-chegados.

- Quem são esses ursos-albinos papai? - o assombro de Horácio crescia mais e mais.

- Não são ursos-albinos, sim ursos-polares - Cinzento disse com um resmungo, ainda que orgulhoso de finalmente saber responder a um dos questionamentos do filho. Eles são nossos parentes e vêm de gêlobus, lá do polo-norte, para nos visitar.

Cinzento, após tais exposições, suspirou pesaroso; sabia que não havia escapatória: naquele ano, haveria natal na caverna da família urso.





[continua amanhã...]

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Um contador de Histórias

A Tale from Decameron, J. W. Waterhouse

Talvez eu tenha nascido assim: com uma vontade inata de contar histórias. Lembro-me pequeninho, quando subíamos para a escola e eu me prostrava ao meio para contar minhas fábulas para meu seleto público de duas pessoas, no maior estilo Canterbury Tales. Era pequeno demais para saber de coisas como clímax, mas deixava sempre um gostinho de quero-mais para continuar a história no dia seguinte - e para mantê-los interessados no que estava por vir. Mais tarde, as histórias passaram para os cadernos, os cadernos passaram de mãos em mãos e eis que me tornei um adolescente que gastava seu tempo criando tramas mirabolantes para entreter meus amigos. Começou com contos e narrações curtas e terminou, lá pelo terceiro ano, com um romance de 700 páginas, escritas à mão (o que multiplica o esforço para 1400 páginas, se contarmos o rascunho anterior). Só pode ser uma vontade inata de contar histórias. Só pode ser.

O sob o boné foi, por longo tempo - exatos 4 anos - o lar desse meu desejo incontrolável. Aqui nasceram narrações biográficas, Cinzento e sua trupe da floresta, Heitor, Cecília e seus conflitos musicais, além dos contos que terminaram por figurar em Antologias através de concursos. Sobre a qualidade das histórias narradas, a relevância dos temas, não posso garantir muita coisa; apenas sei que escrevê-las acalmava minha alma.

Foi então que no início deste ano começamos o blog "As Crônicas do Edifício Cinza" e por muito tempo não sentia uma satisfação tão grande com algo criado por mim. Escrever a história de Ulisses - um rapaz com devaneios romanescos, tentando sonhar numa cidade cinza - é o que por muito tempo eu tenho querido fazer e não estava conseguindo. Talvez pelo impulso coletivo, por contar com gente tão boa empenhada em fazer deste blog um lugar bacana na internet, não tenha desistido previamente, como faço com vários planos da minha vida.

A vida de Ulisses é o que eu escrever agora. Portanto, por ora, o sob o boné está fechando as portas. Não por dar mais importância a um projeto do que a outro (não foram poucas as vezes que falei sobre o valor do sob o boné na minha vida), mas sei que meu foco está principalmente no Edifício Cinza agora e que devo seguir, mais uma vez, essa minha obstinação por contar histórias.

Fica aqui um agradecimento do tamanho do mundo a todas as pessoas que participaram da existência do sob o boné, como leitor, como colaborador ou como inspiração. Tudo que escrevi aqui veio do coração e há uma verdade transparente no que fora narrado nas muitas palavras destes posts.

Para quem quiser continuar acompanhando minha escrita, o apartamento 302 do Edifício Cinza estará sempre de portas abertas. No link abaixo, você tem redirecionamento para todos os meus textos no blog:


Obrigado por tudo, pessoal. Vocês foram ótimos.

rapha.




domingo, 13 de janeiro de 2013

As histórias de um edifício cinza


É uma vontade minha antiga, essa de escrever coletivamente uma história com outros escritores bem distintos. Desde que percebi a facilidade que a internet dispunha para isso, passava-me pela cabeça diversas formas de fazer um trabalho literário que, a muitas mãos, poderia passear por muitos ângulos, vertentes e gêneros, tornando-se um todo heterogêneo. Foi apenas no começo deste ano, contudo, que pude sacudir a poeira dessa ideia e colocá-la finalmente em prática: perguntei a alguns amigos se eles tinham vontade de colocar um blog no ar coletivamente e, para minha surpresa, seis deles mostraram interesse na proposta. Começava a nascer o Edifício Cinza.

A ideia é simples: cada um teve total liberdade para criar uma personagem e atribuir-lhe uma história. Assim, junto com a minha personagem, temos sete pessoas diferentes que, em comum, têm o endereço, um prédio velho e cinza no centro da Cidade - assim mesmo, com letra maiúscula, sendo todas e nenhuma ao mesmo tempo, uma metrópole agitada que encanta alguns e atropela muitos. O pequeno e desimportante Edifício Cinza, de arquitetura rude e estrutura velha, torna-se palco da história de seus moradores ordinários e inquietos: Lêda vê o fim da vida chegando e questiona-se se está preparada para isso; o veterano de guerra Célio, deixado com a companhia apenas das lembranças; Jorge e sua mania incorrigível de revirar o lixo alheio; o romântico Ulisses, que pressente que seu coração será uma rocha em poucos meses; Mirella e os devaneios que tornam sua vidinha tão normal suportável; Ártemis tem problemas com o pai que se refletem na sua conturbada vida adulta; e Mário é enigmático e preguiçoso para encarar os lances de degraus que o separam do mundo fora do Edifício Cinza.

Se esses moradores terão suas histórias cruzadas, ainda não sabemos. Mas cada um, vivendo no próprio mundo de seus apartamento, busca urgentemente alguma motivação para sua vida melancólica e triste.

As Crônicas do Edifício Cinza é um projeto meu com a participação encantadora de Nuno Alves, Cássio Poerschke, Gabriela Ventura, Ana Cris Fernandes, Ana Blue e Eugênio Fernandes Gomes. A partir deste domingo, dia 13,  haverá uma semana especial no blog, na qual o episódio piloto de cada personagem será liberado, um por dia. Esperamos que vocês estejam lá, para dividir conosco essas histórias.

sábado, 29 de dezembro de 2012

O amor nos tempos do .mp3

No episódio anterior... 
Cecília gostaria de comprar o álbum de Simon & Garfunkel, mas não tem lá muito respeito pelos clássicos. Acaba entrando na loja de Heitor, um jovem defensor ferrenho dos discos, que toma o desaforo à dupla como a si mesmo. Mas Cecília tem um trunfo na manga: a fofura do seu enrugado cachorro Brandon, que lhe garante a compra.
Para ler o episódio anterior na íntegra, clique aqui. 




[episódio 2. minha boca estúpida]

San Vicente era um pequeno sopro de ar fresco no coração frio de concreto da metrópole, um pequeno bairro charmoso que mantinha algumas características de tempos idos, como os sobradinhos de telhado imperial, arquitetura colonial e ruazinhas íngremes, apertadas e de pedras. Paradoxalmente, tinha, também, num prédio imponente e comprido que ocupava um quarteirão inteiro, uma das melhores universidades de mídias digitais do estado, que atraía anualmente uma quantidade considerável de jovens moderninhos e descolados, que enchiam os bares pela noite numa boemia desmedida. Aquele era um dos motivos que havia trazido Cecília para San Vicente – a universidade, não a boemia. A menina começaria, em alguns dias, a cursar design ali, como havia acabado de contar para Heitor, em tom excitado. 

O Bossa Nova Café ficava a alguns metros da Esquina dos Discos, um aconchegante espacinho de tacos encerados e mesas rústicas no qual se ouvia, agora, a voz sussurrante de João Gilberto. No patamar superior, iluminado tenuamente com velas, Heitor e Cecília eram separados pelo notebook da garota, que incidia a luz de uma maçã nos olhos esverdeados do rapaz. Brandon, o pequeno e obeso pug, cochilava despreocupado, surpreendentemente, aos pés de Heitor. 

- Você nunca fez faculdade? – Cecília inquiriu, os olhos atentos na tela iluminada do computador. 

- É difícil conciliar estudo com os horários da loja. Às vezes, penso em contratar alguém para me auxiliar, mas não sei se as vendas na loja são suficientes para pagar um funcionário.

Heitor questionava-se se Cecília estava realmente interessada naquilo tudo ou se apenas tentava puxar assunto. Ela parecia entediada, o dedo ávido pelo touchpad do computador, e Heitor começou a achar que aquela tecnologia toda era como o muro de Berlim entre os dois. Mas ela parecia mais linda do que nunca, à luz bruxuleante das velas, os cabelos vermelhos escondendo-lhe parcialmente a face. Sentia-se pendurado ao limite do muro, observando em segredo a beleza tímida de Cecília, feito um adolescente descobrindo os ombros despidos da nova vizinha. Não se lembrava há quanto tempo não tinha um encontro e aquilo o perturbou. 



- Qual é sua arroba? – ela disse de repente, e Heitor desequilibrou-se e caiu do alto do muro. – Posso te dar follow? 

Ele franziu o cenho, abobado. Tom e Elis faziam um belo dueto ao fundo. 

- Quê? 

Ela levantou os olhos, como se um estranho qualquer acabasse de se sentar à sua mesa. Brandon ronronou baixinho de debaixo da mesa. Cecília notou, subitamente, que Heitor estava muito bonito com o rosto barbeado e os cabelos domesticados, os olhos de esmeralda encarando-a com interrogação. 

- Não tem Twitter

- Não senhora. 

- Facebook

- Não. 

- Tumblr? – um meneio de cabeça. – Pelo menos um e-mail? 

- Só o da loja – ele explicou em tom de escusa, quando a garçonete trazia os cafés. – Esquina dos discos arroba bol ponto com ponto bê erre. 

Cecília sorriu, não com zombaria, mas deliciada com o jeito distinto de Heitor – era, para ela, como descobrir outro mundo, diferente dos amigos e dos caras que havia conhecido até então. Ele sorriu também, enquanto adoçava o café, dando de ombros, demonstrando que nada daquilo era-lhe importante. Cecília tinha a mão posta sobre a mesa, os delicados dedos branquinhos em contraste contra a toalha avermelhada. Sentiu vontade de tocar-lhe a mão. Terminou de mexer o café, depositou a colherzinha de prata sobre o pires e, forçando acaso, fingindo casualidade, prostrou os dedos firmes sobre a mesa também. Tarde demais, todavia: os dedos dela já estavam de volta ao teclado do computador. 

- A Duda está me chamando no Face-chat. Um minuto, Heitor. 

Heitor desejou que ela não tivesse trazido aquele trabuco metálico. Havia tido dificuldade para conseguir finalmente marcar aquele encontro e, agora, não parecia estar sozinho com ela, mas acompanhado do mundo inteiro, que perscrutava curiosamente pela tela, feito uma das teletelas de 1984. Afogou a irritação na cafeína adocicada. 

- Afe – ela disse finalmente, ajeitando os óculos -, a Duda pedindo para eu upar o álbum do John Mayer no blog. O link quebrou. 

- Hum – Heitor murmurou diante de todo aquele aramaico. – Você tem um blog. 

- Sim. De downloads – explicou ela, de olhos na tela, como que imbuída em trabalho realmente importante. – Temos um bom número de acessos diários, sabia? 

- De download de discos? – a voz de Heitor começava a embargar. 

- Isso. Ás vezes conseguimos até álbuns que nem foram lançados – gabou-se Cecília, lembrando-se do café que exalava a seu lado e bebericando um gole. – A Duda é ótima com isso. 

- Você só pode estar me zoando, né. 

- Por quê? 

E quando Cecília abdicou da tela para olhar Heitor, encontrou um par de olhos fuzilantes afundados num rosto vulcânico. Só então notou que havia falado mais do que devia. Ele já alcançava a carteira no bolso de trás e jogava alguns reais sobre a mesa, pondo-se de pé. 

- Onde você vai? Acalme-se, Heitor. 

- Isso tudo é um puta engano. Não tem como dar certo. Vamos ficar cada um em seu mundo, tudo bem? 

- Mas que diabos! Que obsessão é essa com essa loja? Você acha que ninguém tem direito de fazer o que bem entender? – Cecília bravejou, irritada. 

Heitor apoiou-se à mesa, num movimento violento o suficiente para despertar Brandon, que se espreguiçou debaixo da mesa. 

- Meu pai me deixou essa loja. Foi ele que me ensinou o amor pelos discos e pela música e o respeito que é preciso dar a eles. – Entre os dentes, completou: - Você tem, sim, o direito de fazer o que bem entender, contanto que o faça longe de mim. 

Heitor desceu as escadas de madeira, os passos abrutalhados, sob o olhar atordoado do pequeno Brandon – e sob os olhos chuvosos de Cecília. O servidor terminava de fazer o upload da terceira faixa do disco, “My stupid mouth”


Com os olhos sem vidro, Cecília viu apenas um borrão sentado à cama, ao seu lado, olhando-a minuciosamente. Era cedo e os raios de sol enfiavam-se pelas frestas da cortina de estrelas, desenhando-se pelas paredes recém-pintadas do quarto, que reproduziam as ondulações azuis de um dos autorretratos de Van Gogh

- Acordou? – o borrão perguntou, cutucando a barriga despida de Cecília. – Anda, conte-me tudo sobre o encontro com o “disqueiro”. 

Cecília envidraçou as pupilas e o borrão metamorfoseou-se em uma moça alta e despenteada, com tatuagens cobrindo-lhe toda a extensão do antebraço. 

- Porra, Duda. É sábado, me deixa dormir. 

- Ih, pelo mau-humor, tem gente aí que não transou na noite passada – Duda disse, um sorrindo de dentes encavalados à mostra 

- O cara é um lunático – Cecília começou, afofando o travesseiro e virando-se para a amiga. – Deixou-me sozinho no café por conta do Música na Faixa

- Você contou para ele do blog? – Duda admirou-se, coçando os cabelos crespos. – Nossa, mas você é burra! É como sair com um vegetariano e contar para ele que você tem um açougue. 

- Não enche. O Heitor leva tudo a proporções exageradas. – Cecília deu-se conta de que faltava algo naquela cama. – Cadê o Brandon? 

Berrou pelo nome do cachorro e, estranhamente, ele não surgiu, correndo com as patinhas curtas num esforço danado de mover o corpo roliço, como sempre fazia. Cecília levantou-se de chofre e encontrou a porta da frente aberta: Duda tinha levado o lixo para baixo e esquecido de fechar. 

Desceu as escadas correndo, pulando de dois em dois degraus, não antes de xingar meia dúzia de palavrões cabeludos com a companheira de quarto. Correu pelas calçadas, procurando o cão, com o coração martelando forte dentro das costelas, esbarrando inevitavelmente nos ombros dos transeuntes – “Que diabos vocês estão fazendo acordados tão cedo? É sábado!” –, sentindo-se por um instante no vídeo de “Bittersweet Simphony” do Verve. Ele não podia ter ido muito longe: era obeso demais para ter uma fuga bem sucedida, além de ser um cão demasiadamente caseiro para saber como se comportar nas ruas. Ele não podia ter ido muito longe, fato que se comprovou quando a sua rua encontrou-se com a rua principal e, numa olhadela para dentro da Esquina dos Discos, avistou Heitor acariciando a cabeça de seu cão.


- BRANDON! – ela berrou ao adentrar a loja, recebendo lambidas generosas na face remelenta. 

- Trajes interessantes, senhorita – Heitor ironizou e, só então, Cecília deu conta de que vestia sua microblusa de dormir com os dizeres “Dad’s Virgin”. 

- Como meu cachorro veio parar na sua loja, pode explicar-me? 

Heitor coçou os olhos, na tentativa frustrada de desviar a atenção das letras na blusa de Cecília. 

- Você que devia explicar. Quando vim abrir a loja, ele já estava à porta, esperando. 

Cecília bufou alto com a simples ideia de seu cachorro aderindo afeição por aquele mal-educado esquentadinho. 

- Isso não muda nada do que aconteceu ontem, viu? Você foi muito grosseiro. 

- Não, não muda nada – Heitor adicionou, posicionando-se atrás do balcão e trocando o lado do disco que tocava . E quando a menina se retirava da loja, embravecida, ele disse: - A gente se vê, Brandon! 

E o cão, nos braços da dona, como quem assente, grunhiu baixinho.


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As ilustrações para esta postagem foram feitas por Daniel Thurler. O sob o boné agradece a colaboração e fica muito feliz de contar com seus lindos desenhos. (: