segunda-feira, 19 de novembro de 2012

(pequena nota de agradecimento)

"When I was lost in the darkness
Oh, thank you for your love."


Hoje faz um ano que eu te vi pela primeira vez. Éramos dois estranhos num habitat a que não pertencíamos, incomodados, como quando entra uma pedrinha no sapato e fica arranhando o calcanhar; era essa a sensação que estas festas causavam. Sob as luzes frenéticas, ricocheteando no salão vazio - a festa era um fracasso e havia, no máximo, umas vinte pessoas por ali -, diante da música alta e ruim, dei-me uma chance de te conhecer. Havia chamado minha atenção seu jeito distinto do que estava acostumado a encontrar nesses ambientes, seu jeito abobalhado de andar, a forma que a embriaguez fazia com que se apoiasse à parede, um quadro quase ingênuo e jocoso. Fez-me ter vontade de conhecê-lo, tudo isso. Ainda bem.

À época, havia cicatrizes rasas na minha pele que você não pôde ver na escuridão da farra. Tornava-me, subitamente, indiferente às sensações que outro ser podia causar em mim - logo eu!, um inveterado amante das emoções enraizadas no relacionamento humano - e desacreditado de que aquelas cicatrizes podiam, ora ou outra, desvanecer de minha epiderme. Mas havia algo de diferente na forma com que andamos pelas ruas vazias àquela mesma noite - algo de esperançoso, de rejuvenescedor. Sentia que, talvez, seria aquela a cura para as minhas feridas. E descobri, algum tempo depois, que estava absolutamente certo.

Enquanto você me curava sem sequer saber, você foi trazendo de volta o sorriso para o meu rosto. Aprendi contigo um outro lado do amor, o lado tranquilo e calmo, sereno feito o mar depois de uma madrugada de ressaca. Reacendi a confiança em outrem, que havia se esfarelado diante dos meus olhos, porque você sempre me inspirou fidelidade e veracidade e sempre demonstrou que cuidaria bem dos meus sentimentos. Pude, finalmente, me entregar a alguém sem medo.

E, por isso tudo, obrigado. Por ter aceitado caminhar comigo, por ter conhecido cada parte da minha personalidade desequilibrada e ter permanecido aqui, por aturar minhas crises de mau-humor e, principalmente, obrigado pelo seu amor.  Não sei onde eu estaria agora se não fosse por você, a meu lado.

Mais que isso, obrigado por ter ido àquela fatídica festa e ter se recostado tão ~~sensualmente à parede (rs). Naquele momento, eu já sabia, era hora de ser, finalmente, feliz.


sábado, 10 de novembro de 2012

O Amor nos Tempos do .mp3


[episódio 1. mantenha o cliente satisfeito*]


Às quartas-feiras, era dia de rock clássico na Esquina dos Discos. Fazia um dia quente de março e o ventilador velho, articulando-se da esquerda para direita ininterruptamente, não dava conta de arejar o recinto, mesmo que fosse uma loja pequena - e, acrescento, muito charmosa - de poucas prateleiras nas quais abarrotavam-se vinis raros, novos ou usados. Era quarta-feira e Heitor, o jovem proprietário da loja, achou que um disco do Led Zeppelin era apropriado como trilha-sonora para o dia de marasmo que se estendia pelas calçadas e ruas da cidade. Não esperava clientes. Às quartas-feiras, restava-lhe ouvir rock clássico e tirar a poeira dos discos.

Aquela quarta-feira, entretanto, reservava surpresas: a porta de madeira, contrariando todas as probabilidades, subitamente foi aberta, com um rangido agudo e rústico. Heitor, feito o ventilador, girou o pescoço em direção à entrada. Uma jovem menina, de cabelos avermelhados e pele rósea, cruzava o corredor de discos, a cabeça baixa, os olhos atentamente fixados na tela do telefone celular. Heitor empertigou-se detrás do balcão, muito direito e apresentável, e, após uma pigarreada tímida, cumprimentou:




- Boa tarde. Posso ajudá-la?

A mocinha levantou os olhos, desinteressada, e ajeitou os óculos enormes com a ponta do indicador.

- Estou procurando um disco, mas não sei bem o nome dos artistas - começou ela, apoiando os cotovelos sobre o balcão e voltando a atenção para o telefone. - É uma dupla de que minha mãe gosta muito e me chamo Cecília por causa de uma das músicas deles. Algo da década de sessenta, ou setenta...

O coração de Heitor deu uma breve disparada; os olhos ganharam um verniz lustroso e cheio de orgulho - seria possível?

- Simon & Garfunkel, "Bridge Over Troubled Water", de 1970?

- Ai, é esse mesmo - confirmou Cecília, indiferente. - Você tem ele aí?

Heitor estava até um tanto emocionado: uma jovem tão bonita em sua loja e ainda fã de Simon & Garfunkel? Um sorriso bobo coloriu o canto dos seus lábios enquanto dirigia-se para a sessão de raridades da loja. Foi quando, vindo como se de muito longe, feito uma tempestade que se formava por trás das montanhas, ela acrescentou, zombeteira:

- Eles são tipo Zezé de Camargo e Luciano gringos, não é mesmo? Eu acho um saco, mas meu cachorro comeu um pedaço da capa do disco da minha mãe e já rodei dúzias de lojas de discos procurando outro para ela...

Heitor parou de chofre e um súbito enrubescer apoderou-se de sua palidez. Engoliu em seco, fazendo seu pomo-de-adão subir e descer abruptamente, e retornou para o balcão, com todos os músculos faciais retraídos, numa carranca medonha. A menina continuava a teclar no celular mas, diante o silêncio do atendente, levantou os olhos, parecendo, assim, notá-lo pela primeira vez: reparou os cabelos charmosamente despenteados de Heitor, seus olhos esverdeados, apertadinhos, quase duas fendas minúsculas, a barba emaranhada que lhe cobria a parte inferior do rosto e a expressão muito chateada que seus lábios crispados sugeriam.

- Não encontrou? - ela perguntou, ficando sem graça sem saber bem o porquê.

- Creio que um disco catalogado na sessão de raridades - Heitor disse com a voz muito sóbria, olhando para um ponto no fundo da loja, como se falasse sozinho - não deve ser vendido para qualquer uma. Tenha uma boa tarde.

Um silêncio constrangedor pôs-se entre os dois, enquanto o ventilador, barulhento como turbina de avião, continuava a baforar o ar quente do fim de verão. Gotinhas de suor salpicaram a testa de Cecília que, de tão nervosa, apertava os dedos do pé, dentro do allstar, contra o chão.

- Ofendi-te de alguma forma?

- Ofendeu toda a cultura pop, ouso dizer - Heitor respondeu, sarcástico e impaciente. - Com licença, preciso trabalhar.

Cecília abandonou a loja, resoluta e consternada, e Heitor não sentiu sequer ponta de arrependimento: tratava-se de um caso de blasfêmia contra a música, assim ele catalogou. Achou, todavia, que seria aquela a última vez em que veria a menina dos cabelos avermelhados, hipótese refutada em alguns poucos dias quando, através da reluzente vidraça, o rapaz notou dois olhinhos aguçados investigando o interior da loja. Heitor quis fingir irritação, mas não pôde mentir para si mesmo: havia qualquer coisa de excitação no fato de rever as sardas que ornamentavam o rosto suave da menina. Cecília cruzou a esquina de vidro e parou à porta da loja, quando ele pôde notar que, entre os dedos da mão direita, havia um coleira que terminava no pescoço de um cachorrinho rechonchudo, de olhos esbugalhados num focinho achatado e postura fadigada. Heitor adiantou-se para a entrada, a vassoura com que varria o chão à mão, bradando com animosidade:

- Esta é a fera que devorou a capa do disco de sua mãe? Você o trouxe para fazer um lanchinho na minha loja?

O cão, perturbado com os gritos de Heitor, como se notasse que, de alguma forma, era ele o assunto, arregalou ainda mais os olhos enormes. Mas Cecília apenas riu e apontou para o pescoço do cão.

- Que isso? - Heitor perguntou, desconfiado.

Contorceu-se e viu que era um pequeno bilhetinho enrolado, preso à gravata borboleta que o cão, muito extravagante, ostentava no pescoço. Temeu qualquer atitude feroz do devorador-de-capas-de-discos-clássicos quando abaixou-se para pegar o bilhete, mas o abobado cão, de língua de fora, babava despreocupadamente. Desenrolou o ínfimo papiro, no qual se lia, em caligrafia redonda e meticulosa:

"Olá, moço. Estou à procura de 'Brigde Over Troubled Water', 
porque comi a capa do disco da minha vovó e, depois disso, ela 
não deixa mais eu entrar em sua casa. Você pode me ajudar? 

Muito obrigado. 
Brandon"




Heitor tentou conter o riso, mas falhou diante da postura jocosa do obeso cão.

- Isso é jogo sujo! - ele disse, dirigindo-se à sessão de raridades da loja.

- Ai, obrigado, moço! - Cecília agradeceu com excitação.

- Chamo-me Heitor - apresentou-se, entregando-lhe o disco.

No fim das contas, todos saíram ganhando: Cecília e Brandon com o disco que devolveria a paz para sua família; e Heitor com o telefone da moça, anotado num cantinho de papel, com a promessa de ligar a qualquer hora destas para tomarem um café.

[continua...]
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As ilustrações para esta postagem foram feitas por Daniel Thurler. O sob o boné agradece a colaboração e fica muito feliz de contar com seus lindos desenhos. (:

*(tradução livre de "Keep the Custumer Satisfied", uma das faixas do "Bridge over troubled water")