quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

enquanto saram as cicatrizes.

É como andar sobre um corpo moribundo, ferido, machucado em sua carne frágil. A cada esquina empoeirada, em cada bairro brutalmente afetado, não há sequer um pedacinho de Nova Friburgo que não sangre ininterruptamente depois dos acontecimentos fatídicos de 12 de janeiro. Não há fuga. Não há oásis em meio ao deserto trágico das vidas engolidas pela lama, pelos escombros e pela força da água. E, embora as feridas continuem ali, abertas, à mostra nos barrancos, sangrando barrentas nas montanhas e pedras que circundam a cidade, as pessoas tentam como podem reaver uma atmosfera de naturalidade que não vai existir de forma genuína durante muito tempo.



Já fazia algum tempo que eu estava de mal com Friburgo. Destas brigas de casal que está junto há muito tempo e ainda se ama, mas a relação não dá mais certo. Talvez tenha sido apenas um jeito de colocar a culpa de tudo que acontecia (ou melhor, que não acontecia) na minha vida em algo além do meu poder. Um bode expiatório, uma desculpa pela falta de força de vontade de lutar pela minha felicidade. Não sei até que ponto eu estava certo de culpar a falta de oportunidades de uma cidade pequena pelas minhas amarguras pessoais, mas lembro-me de falar milhares de vezes que Friburgo não podia ficar pior do que era. Provações superiores mostraram que eu estava completamente equivocado.

Na semana que eu voltei de Niterói (veja os acontecimentos que antecedem essa volta aqui), faltou-me chão por muitos e muitos dias. Senti-me incapaz de suportar a realidade de viver numa cidade destruída, fui brevemente tomado por um sentimento depressivo que ziguezagueava entre a tristeza e a indiferença. Fui egoísta, pensei exclusivamente em mim e no quanto eu não queria presenciar nada daquilo. Mirabolei planos de fuga estapafúrdios, fui acometido de uma coragem selvagem que me impulsionou a finalmente realizar um sonho de anos: ir embora de Friburgo. Pensei em recomeçar a vida em Niterói, cidade pela qual acabei me apaixonando na minha curta estada — e onde agora tenho planos concretos de morar em breve. Pensei em largar tudo e aceitar o convite de fugir para o sul com certa pessoa. Mas quando a cabeça retomou seu pensamento equilibrado e coerente, a decisão de continuar em Friburgo foi tomada. E então veio a fase de acostumar-se com a ideia de que seriam mais dois anos lutando contra o sentimento de aprisionamento que esta cidade me causa.

Um dos motivos pelo qual não quero ir embora agora é a Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, instituição onde nessa semana comecei o 5º período de Letras. Aham, eu já sei que cursos de Letras tem em qualquer cidade e que eu poderia pedir transferência para eles, mas a paixão que tenho por aquela instituição, seu ambiente e seus professores vai além de um curso, de uma licenciatura. Sei que não me sentiria tão bem em qualquer outro lugar e só quem estuda lá sabe do que estou falando.

Também há todas as pessoas que amo reunidas aqui, amizades que vêm desde a infância, toda uma família, conhecidos, gente que já me acostumei a ver sempre e a conviver. Tais pessoas já têm ciência da minha ânsia por algo maior que uma cidade no alto da montanha. Já sabem que tenho planos maiores e que me sinto massacrado aqui pela falta de oportunidades que acredito — embora seja desmentido de vez em quando por pessoas de fora — estarem por aí, me aguardando. A coragem pra deixar tudo pra trás já existe e não haverá dor em lutar por um sonho. Haverá saudade, nostalgia, sentimentos que serão curados com visitas constantes, sem dúvida alguma.

Dizem que a reconstrução de Nova Friburgo durará por volta de 2 anos. Coincidentemente, 2 anos é o tempo que me falta para terminar os estudos. Estarei aqui, vendo a cidade cicatrizar aos poucos e voltar a ser o que sempre foi. Um alívio: poderei ir embora deixando pra trás o lugar que, como uma mãe, foi parte íntima e importante do processo de amadurecimento do ser humano que agora eu sou.