quinta-feira, 26 de agosto de 2010

fim da hibernação.

maybe the sun will shine today.
the clouds will roll away.

maybe i won't feel so afraid.

i will try to understand... either way.
(wilco)

Foram dias longos e frios de inverno, talvez o mais frio de todos que eu já presenciara. O vento cortante da serra congelava os traços de nossas faces, enquanto um arrepio mórbido e estranho subia-nos pela espinha, tomando conta de todos os sentidos de nossos corpos. Contudo, não foi apenas o frio exterior que caracterizou esse rigoroso inverno. Houve uma sensação térmica glacial que nem o mais felpudo dos casacos conseguiria conter, uma necessidade de calor humano que não emanou de canto algum. Não houve opção senão me recolher para hibernar.

Passei 28 dias trancados em minha caverna, um quarto escuro e úmido que incrementava a sensação de frio. Foram necessários muitos cobertores para amenizar tanto frio e confesso que esporadicamente eu mirava a janela, com uma esperançosa torcida para que flocos de neve embaçassem o vidro. Devaneios de uma mente um tantinho atormentada. Durante a semana, eu rolava a grande pedra que obstruía a entrada da caverna e ia cumprir meus compromissos com o trabalho e a faculdade. Não havia vontade, não era algo que me dava prazer, e executava tais obrigações já almejando a volta para a caverna. A trilha-sonora foi composta basicamente pelo álbum homônimo do Songs: Ohia. A melancolia de Jason Molina merecia até um "Música e Divagações" e esse álbum ganhou uma importância instântanea na minha discografia básica - já é, segundo os dados certeiros do last.fm, o álbum que mais ouvi nos últimos 6 meses.

A hibernação é, acima de tudo, um momento íntimo, de contato consigo mesmo. E, depois de tanto tempo, eu voltei a me sentir de uma forma que achei ter ficado num passado não tão distante. Voltaram as caminhadas nas tardes ensolaradas de domingo, as tardes vazias, o sentimento de solidão que faz o mundo parecer enorme demais. Os sentidos ficam aguçados, você passa a sentir as coisas de uma forma diferente, ver as coisas por uma outra ótica. A cabeça se torna uma metrópole em horário de rush, tamanha é a quantidade de pensamentos que a cruzam, se esbarrando com violência, causando um estúpida sensação de embriaguez, mesmo sem ver qualquer quantidade de bebida alcoólica há algum tempo. Não há tristeza. Você está apático demais para sentir-se triste. Há uma forte melancolia (des)colorindo tudo de bege, enquanto você sente a vida esvaindo-se lentamente pela fresta da janela entreaberta. Mas o inverno sempre passa, de uma forma ou de outra.

E quando os primeiros raios do sol primaveril lhe convidam, você se sente tentado a deixar o aconchego de sua caverna e ir apreciar o que o mundo tem a oferecer. Neste momento, eu estou voltando a me sentir vivo, a sentir o sangue correndo com pressa pelo meu organismo. Não sou o mesmo de 28 dias atrás, tenho novos pontos de vista, novos conceitos, novas verdades. E como principal lição disso tudo, aprendi que nunca devemos desaprender a ser sozinhos. A solidão está sempre nos espreitando, esperando um momento de vulnerabilidade para fazer moradia em nossas vidas. E quando você já está preparado para receber essa visita, tudo torna-se muito mais fácil de ser superado.

E quando o céu estiver nublado e os dias chuvosos parecerem não ter fim, há uma música do Wilco que sempre fará o mais perfeito sentido:

"talvez o sol brilhará hoje..."


ps: a analogia com a atitude dos ursos não tem qualquer relação com a quantidade exacerbada de pelos do meu corpo. sério. ¬¬'

domingo, 22 de agosto de 2010

conversas.

- Então é isso.
- Exatamente. Como diria Morrissey: “I was happy on a haze of a drunken hour, but heaven knows I’m miserable now.”
- Para com isso.
- O quê?
- Com essa coisa de ficar citando Smiths, Beatles e outras porcarias depressivas. Você está me irritando profundamente com essa mania idiota.
- Não é mania. Eles apenas expressam coisas que eu sinto.
- Você não sente nada. Do jeito que você é medíocre, sequer deve conseguir apreender o que eles querem dizer. Assiste a filmes com seu olhar superficial, lê livros de forma simplória, achando que são apenas um monte de palavras emboladas, sem entender o que está entrelinhas. Portanto, dá um tempo, okay?
- Ei, por que você está ficando tão irritado?
- Porque você é um ser humano frívolo e irritante, é por isso. E Eu não suporto mais esse monte de baboseira sem fundamento algum que você aponta como motivo dessa tristeza descomedida. Você é o típico caso do defunto que cava a própria cova, se enfurna lá e, em seguida, joga terra sobre o próprio corpo.
- Não fala do que você não entende.
- Eu entendo perfeitamente, não pense o contrário, seu covarde. Entendo com limpidez ímpar essas suas escusas esfarrapadas de que esta cidade está te matando aos poucos, mas que você está preso aqui, com raízes profundas demais. Suas raízes são a covardia, a falta de coragem de arriscar algo novo pela primeira vez. Não há faculdade ou trabalho que justifique esse definhamento interior pelo qual está passando. Isso é pura e simples covardia.
- Por que você fala com tanta arrogância, com tanta raiva?
- Porque eu sou o único que fala a verdade para você. Todos aí com esse papinho que você tem potencial, que tem que explorar isso. Pois eu vejo plenamente a mediocridade que você embala numa bonita ornamentação, mas que não engana quem consegue ver um pouquinho mais profundamente. Lembra-se da professora, que disse que você era um pavão? Ah, ela só queria explicar a metáfora, não é mesmo? Mas você sabe que não. Acho que mais alguém notou que você é um exibicionista dessa mediocridade tão sua, não é mesmo? E você sabe que aquilo te machucou, sabe que seus olhos encheram-se de água e você não conseguiu olhar mais nos olhos dela durante toda a aula. A verdade dói, não é mesmo, meu querido?
- Você não está ajudando muito.
- Você não merece ajuda. Perceba como faz três semanas que está afundado nessa maldita cama – excetuando os momentos em que cumpre seus honrados compromissos com os números e as letras. As pessoas estão indo. Não estão suportando essa sua inclinação estúpida por misericórdia. Ninguém vai ter pena de você. Não há motivo para ter pena. Erga-se e mostre-se um ser humano digno das pessoas que lhe cercam.
- Eu sou um ser humano da solidão e você sabe disso. Como a Ágatha disse da primeira vez que me viu: “O Rapha é um lobo solitário.” Sempre fui sozinho, sempre me virei bem comigo mesmo. Foi estupidez me desacostumar com isso. “Não é sadio acostumar-se com a luz quando somos fadados a viver no breu”, foi o que li por aí. Mas meu peito está voltando a ficar tranquilo novamente.
- A escolha foi sua, sabia?
- Não houve escolha. A solidão é imposta, não escolhida.
- Não foram poucas as pessoas que tentaram te amar, te dar um pouco de carinho, estar com você, te sentir. Mas do alto de sua arrogância, você expurgou todas elas, como se fossem bactérias nocivas a sua apreciada saúde.
- ISSO NÃO É VERDADE!
- Não me vem de novo com esse papo de que você não sabe por que acontece, que é um sentimento involuntário. E nem vem colocar a culpa novamente no pobre praiano lá, dizendo que ele te tornou uma pessoa fria. Isso é tudo baboseira que não cola comigo.
- Então, você me vê como um ser humano dos menos honrados, não é mesmo?
- Te vejo apenas como ser humano, nem menos nem mais nada. Só consigo te ver cristalinamente e tento te alertar pras armadilhas que estás armando para si próprio. Erga-se, rapaz. Já passou da hora.

Ele continua trancado no quarto. No escuro. Sozinho.

domingo, 15 de agosto de 2010

o marujo e o vaga-lume.


O barquinho cortava o negrume profundo com agilidade e astúcia. Não havia nada senão o escuro, um manto infinito que se estendia imponente diante de tudo que existia; não havia som senão a canção de ninar sussurrante do preguiçoso mar.

O marujo cochilava no fundo do barquinho, solitário, decidido. A escuridão era a única verdade que conhecia, o mar o único companheiro que já tivera. Seu coração era acostumado com a frieza da noite eterna e não lhe causava dor nunca ter visto nada com seus olhos cor-de-mistério.

Foi quando abriu os olhos e seu pequeno barquinho de madeira estava mergulhado em límpida fluorescência. O marujo soltou um urro assustado e tentou defender os olhos da luminosidade com o antebraço. Mas quando sua visão embaçada acostumou-se com a claridade, o marujo tomou ciência de tudo à sua volta. Banhado da luz esverdeada, curvou-se para fora do barco e viu seu rosto barbudo refletido na água negra, admirando-se com a plenitude de quem era.

O marujo não conteve a alegria que transbordava de seu peito. Dançou no pequenino convés do barco, à luz do vaga-lume, por horas e horas a fio. Considerou, no fundo do seu ser, o pequenino inseto como seu melhor amigo, a melhor coisa que já havia ocorrido na sua escura e taciturna existência pelo mar sem fim.

Mas os pés cansados, de súbito, pararam de se mover. A dança exuberante do marujo cessou abruptamente quando o pequenino ponto de luz moveu-se egoistamente em direção ao céu. Seus olhos marejados acompanharam a fluorescência esvanecer na única verdade que ele já conhecera: a noite.
De volta ao sufocante bréu, o marujo ensandeceu-se. Chorou copiosamente por horas, deitado na madeira fria do convés, sentindo o beijo misericordioso de uma brisa calma, que levava seu barco cada vez mais para dentro do oceano. Não é sadio acostumar-se com a luz quando somos fadados a viver no bréu, agora ele sabia. Decidiu que nunca mais seria capaz de viver no escuro e, numa medida desesperada, jogou-se no mar.

Ficou submerso por tempo suficiente para perder a consciência. Enquanto seu corpo forte enchia-se de água salgada, sua mente despertava para uma realidade iluminada, leitosa, límpida como uma manhã primaveril.

O marujo não havia mergulhado no mar. Havia mergulhado em si mesmo.

Retornou ao barco com dificuldade e, ao jogar-se no convés, contemplou a luz de um farol rasgando a noite, a quilômetros de distância. Inspirou uma grande quantidade de ar, revigorando seu corpo, abriu um tímido sorriso e soltou as velas do barquinho à ventura.